sábado, 12 de novembro de 2011

Aquelas pessoas

Eu não sou como aquelas pessoas que varam a noite dançando em baladas porque perderam o próprio ritmo, que gritam demais porque não conseguem ouvir a si mesmas. Não, não é possível que eu seja como aquelas pessoas que se vestem de discípulas para se fazerem passar por Judas e, com um beijo traidor, condenam à cruz o coração de quem as ama. Elas fotografam os momentos de suas vidas apenas para postar no Facebook, sem se preocuparem em registrar as emoções onde realmente importam: dentro.

Hein?! Não é possível que eu me pareça com aquelas pessoas. Elas fingem não ter visto o semáforo amarelar e cruzam, a 120km/h, a vida de quem quer que seja, sem se preocupar se algum sonho será atropelado pelo caminho. O que? Não, não sou desse jeito. Aquelas pessoas é que são carnívoras, se alimentam de almas, devoram a felicidade dos outros somente para provarem que a musculação deu resultado, ao passo em que também demonstram que seus braços desenvolveram mais do que seus cérebros.

Pare de me dizer isso, pois, definitivamente, eu não sou como aquelas pessoas, que necessitam da cerveja para extravasar, que saem tanto da linha que acabam perdendo o controle de suas ações e rolam numa ribanceira qualquer. Você está querendo me machucar, não é? Chega de apontar que eu também me escondo dos meus medos, que também tomo minhas decisões lançando um “cara ou coroa”. É mais confortável ficar daqui, enfiando o dedo nas feridas alheias, enquanto as minhas próprias seguem sem tratamento. Meu interior está cheio de pus.

Aquelas pessoas são o inferno, porque me mostram minha verdadeira face, porque me apresentam às consequências de minhas atitudes. Sim, elas é que me sacodem, pronunciando palavras que me arrastam de um lado para o outro. Não adianta fugir daquelas pessoas, pois, quando menos espero, elas surgem, como caixinhas de música que jamais perdem a corda, como charadas das quais nunca descobrirei as respostas. Não quero mais me encontrar com aquelas pessoas, elas são meu espelho, e eu não gosto de me ver.

Eu não sou como aquelas pessoas que se sentem juízas das atitudes de quem as cerca, que sentam sobre seus próprios defeitos para proferir a condenação do outro. Não sou dessas que deixam de perdoar, condenando alguém à prisão perpétua, degolando esperanças almejavam muito continuar respirando.

Na verdade, sou pior, porque estou algemado pela hipocrisia, vivo no calabouço escuro no qual a demagogia me lançou. A luz do sol não areja mais minhas ideias, de modo que achei melhor me acomodar e aguardar até que chegue o terceiro dia. Estou trancado por fora, sem poder me ver de perto, e, por incrível que pareça, somente aquelas pessoas têm a chave que poderão me ajudar a chegar de novo ao lado. De dentro.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Ilhas desconhecidas

    Quem lê assiduamente minhas crônicas sabe que, para mim, José Saramago é o maior gênio da literatura mundial. Os melhores livros que li, até hoje, são de autoria deste escritor português. Poucos dias atrás, terminei de saborear as páginas da obra “Todos os nomes”, e, horas depois, já mergulhei em “O conto da ilha desconhecida”. Não vou entrar em detalhes a respeito das tramas citadas, para não tirar de ninguém o gostinho de descobrir linha por linha da genialidade “saramaguiana”. Basta dizer apenas que em “O conto da ilha desconhecida” encontrei os versos que me inspiraram a escrever este texto.

    Trata-se de parte do diálogo travado entre um homem e um rei, ambos personagens centrais do romance em questão. “(...) Que ilha desconhecida, perguntou o rei disfarçando o riso, como se tivesse na sua frente um louco varrido, dos que têm a mania das navegações, a quem não seria bom contrariar logo de entrada, A ilha desconhecida, repetiu o homem, Disparate, já não há ilhas desconhecidas, Quem foi que te disse, rei, que já não há ilhas desconhecidas, Estão todas nos mapas, Nos mapas só estão as ilhas conhecidas, E que ilha desconhecida é essa de que queres ir à procura, Se eu to pudesse dizer, então não seria desconhecida”.

    Após ler isso, comecei a pensar em nós, as pessoas, como as tais “ilhas desconhecidas” de que o homem quer ir à procura. Conheço gente que é uma ilha deserta, tão paradisíaca que a beleza do inabitado se confunde com a solidão do vazio de vida. Nelas, a paisagem permanece intocada, sagrada, à espera de algum corajoso que ouse descobri-las. Algumas estão perdidas no oceano, acreditando que o resto do mundo não se interessa por sua virgindade, pelo modo distante com que se relacionam com as superfícies de si mesmas. Outras precisam urgentemente ser desbravadas, antes que a maré suba demais e as inunde, antes que os castelos de sonhos, erguidos na areia, sejam levados pela correnteza.

    Se o personagem de Saramago for à caça das nossas ilhas de dentro, descobrirá pessoas que são arquipélagos gigantes, badalados, tão cheios de visitantes que já não é possível avistar terra firme. Essas se deixaram invadir pela multidão, são praias lotadas como a de Copacabana e, ao passo em que convivem com a festa de receberem muitos banhistas, têm que enfrentar o silêncio do lixo que eles abandonam em suas areias. Algumas estão muito poluídas, perderam com o tempo a limpidez e a clareza, de modo que o fundo de seus olhos foi tomado pelo lixo. Outras tornaram-se impróprias pra banho, viram suas águas serem salgadas em excesso pelos problemas e, consequentemente, transformaram-se no Mar Morto.

    Há, ainda, aqueles de nós que são ilhas tristes e inabitadas, onde a vida foi devastada pelo Tsunami que o fim de um relacionamento provocou, em que a luz do sol foi ofuscada pelo eclipse de uma doença. Por outro lado, existem aqueles que ontem eram ilhas perdidas, até que encontraram um modo de serem novamente visitadas, até o dia em que alguém se aventurou a passear e mergulhar nelas. Somos milhares de ilhas desconhecidas, em busca de um mapa que nos possa catalogar, à espera de navegantes que encarem os ventos da viagem e descubram como erguer castelos às margens de nossas vidas.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

O dia em que virei metáforas

 Até aquela fatídica terça-feira, eu era a partida de futebol mais esperada pela sua torcida, um estádio lotado de rubro-negros. Era a final da Copa do Mundo, um jogaço de Brasil versus Argentina. De repente, um chute errado e a bola – eu – foi chutada para escanteio. O juiz – você – me aplicou o cartão vermelho e me transformou numa pelada de cinquentões, numa disputa de meia tigela, que não lota seu estádio nem leva sua galera ao delírio. Passei de gol de placa a pênalti perdido. Você ficou em silêncio, seu olhar não apita mais as vuvuzelas quando encontra o meu. Perdi o jogo, tomei uma goleada e, agora, deixo o campo, saudoso dos aplausos da sua plateia.

    Horas antes de você me jogar fora, eu era o seu bilhete premiado da Mega Sena, o seu passaporte oficial para a riqueza de dentro. Não sei por que, mas, num chiste, você cismou com a ideia de que sou azarado. Então, deixei de ser sinal de sorte em sua vida e fui transformado numa sexta-feira 13. Não sou mais bilhete nenhum, muito mal sou uma Tele Sena que, mesmo premiada, você insiste em largar na gaveta. Se você continuasse raspando, veria que posso revelar brindes capazes de te fazer um sortudo novamente. No entanto, você nem sequer confere os resultados, para perceber que, me tendo como sua bolada de ouro, poderia marcar muito mais pontos.

    Você desligou a TV em que me assistia, minutos depois de ter me dito que eu era o seu programa favorito, a novela das oito do seu canal. Sem mais nem menos, fui rebaixado à posição de sessão da tarde, transformado numa chata reprise que você parece já estar cansado de assistir. Eu era o Silvio Santos do seu domingo e, de uma hora para outra, virei a vinheta do Fantástico, o som aterrorizador que te lembra que o descanso está chegando ao fim. Você parecia se divertir comigo sendo seu final de semana até que, de repente, passou a me encarar como insuportáveis horas extras de expediente, como uma praia em pleno dia de chuva. Gradativamente, sua antena está perdendo o meu sinal e eu estou saindo do ar em seus pensamentos.

    Nos vendo juntos, qualquer um juraria que eu era o seu parque de diversões, uma montanha russa na qual você adorava dar piruetas. Acho que meu sistema deu pane, algo em mim deve ter escangalhado, porque, da noite para o dia, você enjoou de brincar comigo. Virei um carrossel sem graça, um trem fantasma que não assusta ninguém, uma atração infantil e boba. Eu era a sua principal fonte de entretenimento, entretanto, hoje não passo de uma companhia dispensável, do beijo que você evita, de alguém que você ignora como seu acompanhante para ir a um casamento, simplesmente porque não precisa. Eu era o seu traje de gala e, agora, sou nada mais que um pijama encardido, que você não veste nem para dormir.

    Se a cada segundo não estivesse sendo picotado por você, eu daria tudo para reconquistar o primeiro lugar da tabela, para voltar a ser o líder, porque só Deus sabe o quanto dói amargar a lanterninha de uma vida que sempre quis ver campeã. Só Deus sabe o quanto me falta o ar nos momentos em que seu silêncio agarra forte o meu pescoço e me estrangula, o quanto sinto falta do chão que sua amargura está destruindo, sem dó nem piedade. Só Deus sabe o quanto me apago quando me lembro que eu era o seu radio de sol e, hoje, fui reduzido à luz de cabeceira, a um abajur que não ilumina nem o seu coração.

  Mas, no meio do caminhão de dor que carrego nas costas, encontro a certeza de que, um dia, você se arrependerá de ter me tirado de cartaz, de ter cortado meu personagem do seu script, de me atingir o coração com tiros disparados pela sua indiferença. Neste dia, no exato momento em que você chorar e não encontrar meu ombro para repousar, em que a sua lágrima cair e minhas mãos não estiverem por perto para enxugá-la, em que o desespero gelar o seu edredom e você não encontrar o calor do meu abraço para te aquecer, em que a culpa assassinar a sua tão sonhada liberdade e você se deparar aprisionado pela solidão, lembre-se: você tinha tudo, mas preferiu me transformar em nada.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Torres Gêmeas

Até poucos instantes atrás, eu estava de pé, com todas as minhas centenas de andares bem alicerçadas. Eu era um pentágono; nós éramos duas torres gêmeas, gigantes e aparentemente inabaláveis. De repente, você disparou palavras, fechou janelas, atirou bombas nas saídas de emergência, vedou minha entrada à sua vida. A partir daí, a queda durou poucos milésimos de segundos, não demorou muito para que meu edifício inteiro viesse ao chão, me resumindo a pó. Fui atingido por dois aviões e, num piscar de olhos, meus sonhos desabaram. Só vejo fumaça em minha frente, não sei se a felicidade ainda respira debaixo de tantos escombros. Eu, por exemplo, já não respiro mais.

No meio da tragédia, meu pulmão apenas troca substâncias com o ambiente externo, porque meu ar – você – acabou de virar poeira. As paredes da minha vida foram destruídas, o teto se foi e, agora que está chovendo, não tenho abrigo para escapar da tempestade, não tenho em quem me proteger do frio. Estou lançado aos restos, ao pouco que sobrou do muito que existia, às músicas que um dia foram companhia, mas que, neste momento, não passam de solidão. O bombardeio foi tão rápido que não tive como fugir dele, aliás, eu nem sequer previa que dinamites estavam prestes a me mandar pelos ares. Boom!  Voaram pedaços meus para todos os lados.

Não tenho noção de como sobreviverei sem você e eu formando as torres gêmeas, sendo obrigado a me deparar com luto onde, ainda ontem, era festa em meu coração. Não posso imaginar como suportarei acordar, amanhã, e não ser banhado pela sua alegria, e não ser regado pela sua presença. Acho que, daqui pra frente, vou morrer aos poucos, pois minha terra ficará árida e não suportarei a secura. Minhas pétalas murcharão, pouco a pouco, e as rugas que aparecerão em meu rosto serão sintomas dos anos que se passarão a cada dia que eu conviver com a sua ausência.

Pode parecer exagero, no entanto, agora, sinto-me ruir, a tal ponto que, se pudesse, ligaria o sinal de emergência dentro de mim. Por favor, salve-se quem puder, salvem-me também. O pior é que não há janelas das quais eu possa me jogar e escapar do que acontece em minha mente, estou aprisionado no meio do fogaréu, e não existem bombeiros capazes de aliviar as dores que as chamas provocam. Minha alma deu perda total: teve 100% de sua extensão devorada pelas labaredas.

Amanhã ou daqui mil anos, verificando a paisagem, tenho certeza que ainda verei os sinais da tragédia, os milhares de cadáveres em que meus sonhos se transformarão ao fim do martírio, as cinzas dos planos que escrevíamos. Quando abrir os olhos, terei que me deparar com a certeza de que meus dias se acabaram, de que fui lançado numa noite sem fim, de que as torres gêmeas já não existem mais. Nós já teremos desabado, e, mesmo vivendo, eu já terei morrido.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

O garoto que não sabia

Do outro lado do espaço, entre o planeta dos que se perderam e a galáxia dos que nunca se encontraram, mora um garoto que tem mais de 20 anos ou, quem sabe, um idoso com quase um século de memórias. De repente, atingida por meteoros, a gravidade dos seus sonhos puxou o rapaz para o planeta Terra... Adeus, universo de noites em baladas sem fim; os robôs que nada sentiam foram deixados pra trás. Porém, ele não sabia que, mesmo transformando-se em humano, poderia continuar visitando a lua e brincando com o sol – e que, inclusive, é isso que nos torna de carne e alma. Ele não sabia que ainda podia se vestir de estrelas.

Já no Planeta Azul, passou a morar num edifício gigante, um arranha-céu de dezenas de andares, situado bem no meio de seu mundo. Sem elevador e sem ter como descer do mais alto patamar de si mesmo, o menino vivia à espera de alguém que pudesse libertá-lo da torre, onde seus traumas e medos o assombravam, pintados na parede. O garoto não sabia que tranças só salvam nos contos de fadas, nem imaginava que, para alcançar a liberdade, seria necessário se entregar num salto pleno e sem volta, no qual seria possível prever se os pés agüentariam o impacto de tocar o solo da realidade ou se os olhos suportariam o clarão de enxergar a luz do dia.

Ajudado por um homem, pulou, e, mesmo com o sorriso cheio de escoriações e um abraço quase aleijado, conseguiu se recompor. Entre caixas eletrônicos que respiravam e espantalhos sem cérebro, o garoto encontrou um leão, suficientemente corajoso para compreendê-lo – talvez, um bondoso homem de lata, ávido por conseguir encontrar alguém que lhe desse um coração ou o ajudasse a reconstruir o seu, tão destruído pelas enchentes, tão devastado pelos terremotos. Mas, o garoto não sabia como retribuir a quem lhe estendera a mão... E, por não ter aprendido como ser solidário, ainda lhe diziam que ele, sim, é quem era o burro.

Convencido de que não prestava para nada, o garoto que não sabia decidiu que o melhor era voltar para sua torre e conviver em seus becos escuros, mesmo que isso lhe matasse a alma, mesmo que isso lhe custasse a vida. No entanto, após tentar, inúmeras vezes, retornar para o edifício, percebeu que é impossível voltar atrás no caminho, que os rastros do ontem desaparecem um após o outro, e que o passado era um lugar no qual ele jamais poderia por os pés novamente. Infelizmente, ele não sabia que as lágrimas choradas poderiam construir pontes para o futuro e que as dores, cicatrizadas, representariam o aprendizado que faz nascer flores onde o presente já parece agonizar.

E, assim, o garoto, que não sabia irrigar o próprio solo, resolveu partir e, como um sem terra, começou a construir sua moradia na vida dos outros. Tornou-se um apaixonado pelas sombras, alguém que sentia o coração palpitar ao simples vulto do carinho de alguém, que não sabia que amor só nasce em terra que foi preparada e que admiração e confiança necessitam de sementes boas para brotar. O rapaz seguiu amando, ora alguém que apenas tinha passado para lhe deixar uma carta, ora alguém que somente tinha surgido para lhe roubar um sorriso. Novamente machucado e impedido de colher, visto que a aragem foi toda feita em território que não lhe pertencia, o garoto foi expulso da vida de pessoas que amava.

Hoje, o garoto procura um modo de se reconstruir, mas ainda não percebeu que ninguém irá lhe trazer os pedaços que lhe faltam, afinal, cada um de nós também tem suas próprias partes para recolher. Agora, deste lado do espaço, entre o planeta dos que querem se encontrar e a galáxia dos que nunca desistirão, mora um garoto que não tem idade, que não conta seu tempo em anos e que, embora continue sem saber em que universo ficou, já descobriu, pelo menos, que o sol sempre volta para os que não se entregam. E a felicidade também.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Velha roupa colorida

É provável que os matusaléns de plantão e os amantes de uma boa safra da MPB se lembrem do título desta crônica, “Velha roupa colorida”. Trata-se do nome escolhido por ninguém menos que Belchior para resumir uma de suas mais célebres composições. A letra desta música exala poesia, entre versos que, em minha opinião, reivindicam a volta de atitudes que nos façam jovens, independente da idade que temos. “E o que há algum tempo era jovem novo/ Hoje é antigo, e precisamos todos rejuvenescer/ (...) No presente a mente, o corpo é diferente/ E o passado é uma roupa que não nos serve mais”.

Disso, presumo: precisamos urgentemente tirar nossa velha roupa colorida do armário. Creio que, ainda na longínqua década de 80, Belchior já estivesse criticando essa (falsa) atmosfera de modernidade na qual vivemos, onde pretendemos retardar o envelhecimento, mesmo passando dezenas de horas por mês em frente ao computador. O compositor parecia ter a visão do que seria o futuro que, hoje, anos depois, tornou-se realidade. Cá estamos nós, com nossas velhas roupas coloridas jogadas no armário, com nossos sonhos de ser jovens mofando dentro das gavetas, acreditando que a tecnologia vá, enfim, nos salvar do tempo.

Enquanto nos preocupamos com isso, os dias correm e, quando nos damos conta, já era: “o passado é uma roupa que não nos serve mais”. Então, ao invés de procurarmos nos colorir com outras esperanças, insistimos em ir às ruas trajando atitudes maltrapilhas, que nos vestem como empresários mal amados. Saímos passeando pelo shopping, exalando um ar de gravata-borboleta, que nos embeleza por fora, mas nos sufoca. Vamos às baladas usando os vestidos mais caros, que nos emprestam a pose de quem só sabe viver encima do salto, de quem não é capaz de suportar o impacto de pousar os pés descalços sobre o chão.

A velha roupa colorida de Belchior está largada por aí, jogada num canto qualquer, prestes a virar pano de chão. É a poesia, o gesto descompromissado, o abraço que não pode ser comprado, o sorriso que não se vende. São atitudes que funcionam como Renew para o coração: evitam o aparecimento de rugas. São gestos que já saíram de moda, roupas que só foram usadas por quem realmente soube se aproveitar delas, mas que não perderam o brilho nem desbotaram, afinal, o que é colorido de verdade não se deixa vencer pelo preto e branco; o que já foi arco-íris nunca perderá as sete cores.

Pelas praças, ninguém se reconhece mais, e não para de crescer o número de pessoas que só querem ser abraçadas pela webcam. Salas virtuais de bate papo estão mais lotadas do que saraus, livros viraram tablets, poetas transformaram-se em chatos de galochas, crianças ganham um celular antes mesmo de aprenderem a se comunicar pelos olhos. O Twitter está aí, multidões me seguem, mas não sabem quem sou nem para onde sou capaz de levá-las. Em pleno florescer das novidades, falar em velha roupa colorida lhe parece absurdo? Pois é por isso que precisamos todos rejuvenescer.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Dia de gente

“Hojeeeee! Hoje é meu dia de gente... Hojeeeee! É proibido dormir...” Quando ela acordou, Paula Toller estava cantando os versos desta música. O rádio sobre a penteadeira dormira ligado em sua estação FM favorita, e era de lá que saía o doce berro da vocalista do Kid Abelha. Sentiu-se convidada pela melodia, percebeu seus olhos dançando no ritmo da levada e, num relance, decidiu: “Hoje também será o meu dia de gente”. Olhou no relógio e notou que ainda não passava das sete da manhã. Mesmo assim, saltou, com toda empolgação, da cama e foi bem depressa para o banheiro. “Como é bom sentir-se gente de vez em quando”, sussurrou, encarando-se no espelho.

Partiu pra cozinha e abriu a janela com um sorriso mais iluminado do que o sol, abriu-se para o dia como se seus cômodos estivessem desarejados há muito tempo, como se seu ânimo estivesse precisando urgentemente ser aquecido. Recepcionou as primeiras horas da manhã como se fossem as últimas, valorizando cada segundo mais do que usualmente valoriza o dinheiro. “Afinal, é isso que gente de verdade faz: cuida do tempo tendo consciência do ouro que tem em mãos, não desperdiça segundos fazendo questão de poucos centavos, não troca o valor de suas preciosas horas nem pela maior cifra do mundo. Gente que ainda não virou um caixa eletrônico ambulante, que não transformou suas palavras em cédulas, sabe que falta faz um dia”, imaginou.

Decidiu que não ia tomar café. Queria se alimentar de algo que não pudesse ser mastigado, e sim sorvido, como o ar. Resolveu pegar um livro e devorou poesias, encontrando proteínas e sais minerais em cada um dos versos que lia. “Era desses nutrientes que minha alma estava precisando”, descobriu, enquanto saboreava uma farta porção de Clarice. “No meu dia de gente, estou percebendo o quanto minha alma estava desnutrida. A partir de agora, quero sempre complementar minha nutrição com boas doses de beleza. Para isso, vou procurar passar mais tempo com os amigos e menos no Facebook, olhá-los nos olhos, quero me nutrir ajudando-os a resolver suas inseguranças e comemorando os momentos em que forem fortes – e fracos. Reciclarei o meu lixo percebendo o que há de belo no outro, o jeito como sorri, o modo como afasta a lágrima que acabou de cair”, prometeu.

Antes de almoçar, foi até a pracinha da esquina, decidida a perceber coisas que só gente de verdade tem a capacidade de enxergar. Viu a forma esplêndida com que o vento esparramava as folhas, encontrou duas amigas se abraçando e, ao se deparar com um casal de velhinhos caminhando, descobriu o quanto dura a eternidade. “Isso sim é ser pra sempre: quando o amor não vira ruga dentro de nós e a fraqueza dos ossos nos debilitam, mas nosso coração continua forte, apoiado num sorriso que, vá lá, já está de denturas, no entanto, continua tão belo quanto foi um dia”, constatou.

Na paisagem, alcançou um andarilho, que tinha o hábito de passar as noites dormindo num caixote. A gente de hoje não tem tempo para notar meros detalhes como esse, está sempre tão atrasada para algum compromisso que pisoteia os que vivem pelas ruas, como se nem sequer fossem... gente.

Foi até o homem, que diziam por aí ser jovem, embora a juventude já estivesse afastada há tempos de suas atitudes, de seus sentimentos. Cogitou dar uma esmola, entretanto, hesitou. “Gente que é gente não faz só isso: também doa um pouco de atenção, também se entrega como dízimo. Por isso, hoje não compartilharei apenas umas moedinhas que estavam jogadas no fundo da carteira; algo tão simples todo mundo faz. Vou fazer diferente: ao invés de abrir as mãos somente para dar o dinheiro, as abrirei também para um carinho e para um afago. Ao invés de abrir a boca para criticá-lo e dizer que fede à pinga, tentarei abri-la para dizer ao mendigo algo que preste, que valha até mais do que uns centavos. Hoje, eu serei a esmola”, desafiou-se.

E, assim, ela passou o dia: fazendo gestos que são exclusivos de gente genuína, e não dessas que falam de Deus nas igrejas, mas rejeitam homossexuais e apóiam a matança de prostitutas; dizendo coisas que só gente com coração tem coragem de dizer, e não espalhando boatos e usando a língua para ferir o vizinho; inundada por sensações que apenas gente de carne e coração consegue, e não banalizando os sentimentos, achando que quem chora está mexicanizando a cena. Quando a noite chegou, sentiu-se satisfeita por ter conseguido algo tão difícil nos dias de hoje: ser, simplesmente, humana. Poder dramatizar. Contemplar o que está diante da janela. Ao apagar a luz e se deitar, sonhou: “quem me dera que eu conseguisse – e que me deixassem – ser gente todos os dias”.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Bala perdida

Sempre tive noção de que estamos, hoje em dia, cada vez mais vulneráveis ao que os outros dizem. Porém, só recentemente é que descobri – e senti na pele – o quanto. Fui vítima de uma fofoca, de uma flecha que dispararam contra mim e que me atingiu em cheio. O alvo foi certeiro: uma relação profissional que eu começava e que, de repente, foi manchada pelo veneno de alguém, que, muito provavelmente, jamais saberei o nome. Foram apenas comentários, mas, sem dúvidas, causaram estragos como se fossem bombas. Uma Hiroshima inteira de amizade foi pelos ares em poucos segundos.

Com isso, cheguei à conclusão de que quase todos nós, em algum momento de nossas vidas, já fomos atingidos por palavras que, disparadas ao relento, nos acertaram quando menos esperávamos. Não fui o primeiro e com certeza não serei o último. Me arrisco a dizer que se eu fizer uma pesquisa na esquina será impossível encontrar uma pessoa que nunca tenha levado este tiro, nem que seja de raspão.

Talvez algumas tenham sido atingidas apenas de leve, ficaram machucadas, mas não chegaram a perder um braço de confiança ou algo pior. No entanto, outras foram metralhadas, estavam no meio do tiroteio de comentários maldosos e nem sabiam, eram a ‘capa’ do jornal do bairro e nem imaginavam. Essas, perderam bem mais do que uma companhia para ir à festa ou algo menor; viram seus sonhos sofrerem com paradas cardíacas, sua reputação ir parar num quarto de CTI, sua dignidade respirar através de aparelhos. Há, ainda, aquelas que foram vítimas fatais: perfuradas pela língua alheia, testemunharam sua alegria sangrar até o fim.

“Onde há fumaça há fogo, acreditam todos, o que transforma toda fofoca numa verdade em potencial. Não há fofoca que compense. Se for mesmo verdade, é uma bala perdida. Se for mentira, é um tiro pelas costas”. Neste trecho de uma crônica de Martha Medeiros, ela está coberta de razão. O cara é casado e, depois do expediente, para num restaurante para dar força à amiga do trabalho, que está em frangalhos porque se separou do marido. Em instantes, passa a dona Clotilde, vizinha do homem, e avista a cena. Pronto! Em instantes, o gesto de amizade, que não tinha nenhuma malícia, transforma-se em motivo de fofocas, que se espalham como rastejo de pólvora, e, horas depois... Bang, bang, bang! O rapaz foi atingido e o casamento dele sofre sérias perfurações. E o pior é que nem sequer podemos prever de onde virão os tiros.

E, assim, vamos vivendo, na iminência de, a qualquer momento, nos surpreendermos com uma bala perdida, com algo que inventaram sobre nós e está prestes a nos ferir, com um comentário falso que chegou aos ouvidos do nosso chefe e que nos custará o emprego, com o silêncio dos tiros que, disparados ao pé do ouvido de nossos amigos, farão com que a confiança que eles têm em nós se machuque. São tiroteios aos quais sobrevivemos – ou não – todos os dias, pequenas violências que nos acertam no momento em que menos esperamos. Quando estamos distraídos e nos sentindo protegidos por nossos coletes à prova de fofoca, uma bala perdida surge do nada e... Bang! O tiro nos pega pelas costas.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Quem matou Amy?

A morte de Amy Winehouse virou o prato principal da semana. Principalmente nos programas de televisão, os degustadores de uma boa tragédia começaram a surgir de todos os cantos, lançando mão de seus recursos culinários para dar seus pitacos sobre o motivo que ceifou a vida da cantora britânica. Diante dos comentários que ouvi acerca do fato, até então, apenas um me cheirou bem: o do colunista da Folha, João Pereira Coutinho – os outros se pareceram mais com oportunismo.

“Morreu Amy Winehouse e os moralistas de serviço já começaram a aparecer. Como abutres que são. Não há artigo, reportagem ou mero obituário que não fale de Winehouse com condescendência e piedade. Alguns, com tom professoral, falam dos riscos do álcool e da droga. (...) O sermão é hipócrita e, além disso, abusivo. Começa por ser hipócrita porque este tom de lamentação e responsabilidade não existia quando Amy Winehouse estava viva e, digamos, ativa. Pelo contrário: quanto mais decadente, melhor; quanto mais drogada, melhor; quanto mais alcoolizada, melhor”, escreveu.

O colunista me despertou para uma nuance que passara despercebida aos meus pensamentos. Os mesmos fãs que, hoje, choram a morte de sua diva, fizeram questão de vaiá-la, sem dó nem piedade, num show que ela realizou na Sérvia, há pouco mais de um mês. Juntando este fato com as palavras de João Pereira, cheguei à conclusão de que enquanto a cantora estava no centro do picadeiro, fazendo a alegria da platéia por meio de quedas vexatórias e piruetas motivadas pelo álcool, ninguém se mostrava preocupado com os sentimentos dela nem com suas crises existenciais. Pelo contrário. Amy era enxergada como uma espécie de mulher gorila, que estava no espetáculo circense da mídia apenas para divertir o público e aumentar a vendagens de revistas e jornais. Nem de longe a artista era encarada como um ser humano.

Assim, me pergunto: quem matou Amy? Será que fomos nós? Talvez, assim como ajudamos a matar um amigo que, de pileque, é incentivado a tornar-se o palhaço da turma. A galera ri e acha graça dos tombos do colega bêbado, até ele ser atropelado enquanto ia pra casa e morrer ou ter uma cirrose. Aí, então, o Fulano vira vítima e nós nos inocentamos, lançando ao cadáver olhares cheios de piedades, aqueles mesmos que, horas atrás, só estampavam deboche e um leve desprezo. Ou será que quem matou Amy foi o discurso daqueles que incentivam a matança nos presídios e zombam dos assassinos que são tratados como bicho, desprezando que seus filhos também matam gays e sonhos pelas ruas?

Fico pensando na hipocrisia e no abuso que tomam conta de nossas vozes quando lamentamos a morte de Amy Winehouse, mas continuamos contribuindo para que “outras almas afogadas” se tornem as protagonistas do próximo escândalo que fará nossa alegria. Adoramos ver o circo pegar fogo, até que alguém que amamos vai para a fogueira. Só neste momento é que nos damos conta da nossa condição de assassinos, que não arrancam sangue com armas de fogo nem com facas, e sim com palavras. Deboches e piadinhas de mau gosto também são um modo de matar.

Me chamem de lunático, porém, para mim, quem matou Amy não foram somente as drogas nem apenas as biritas. Fomos também nós e nossa mania de continuar batendo palma para os palhaços continuarem nos divertindo, sem nos dar conta dos riscos que isso envolve. Agora, fingindo que não é nada com a gente e dando um descanso à consciência, deixemos que os abutres de plantão façam a festa sobre o cadáver de Winehouse. Isso só prova que há muitos corações por aí fedendo à carniça.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Aos desconhecidos

Hoje, Dia do Amigo, tem uma ideia que não larga do meu pé. Ou melhor, da minha cabeça. Mais do que sentir vontade de homenagear os amigos que tenho, que me ajudam a remar o barco e são pedaços do céu, meu pensamento está viajando em busca daqueles que nunca encontrei, dos navegantes que ainda não desembarcaram no meu cais, ou de quem um dia nadou pelas minhas águas, mas naufragou cedo demais, antes mesmo que desse de tempo de eu salvá-lo.

Penso nas pessoas que vejo apenas nos jornais ou nas capas de revistas, naquelas de que não sei nada além do nome ou que vivem nos apartamentos pela cidade, e que nem sequer sabem da minha existência. O que será que achariam do meu jeito? E eu, o que pensaria da forma como costumam sorrir? Será que nos daríamos bem, que iriam querer fazer festa surpresa para mim no meu aniversário? Ou nossas estrelas não combinariam, fazendo com que nosso encontro provocasse o estouro de um meteoro?

Só o que sei é que, agora, sinto falta desses amigos: dos que nunca foram nem serão meus. Dos que se apagaram e dos que nem chegaram a se acender. Dos que se foram e dos que partiram sem se despedir. Dos que ficaram pra trás e dos que nunca encontrei pela frente. Dos que eu não soube valorizar e dos que não me reconheceram ali. Sinto falta dos amigos que não atravessaram a ponte, que ficaram do lado de lá e eu só consigo acompanhar de longe. Meu coração lamenta a ausência dos amigos que não vieram, dos que nunca bateram à minha porta, dos que fingiram não estar em casa quando eu toquei a campainha da vida deles. Nem pela janela me deixaram entrar.

Choro a dor de reconhecer o quanto de gente nunca poderei amar, o número de páginas em que jamais escreverei meus sentimentos de eternidade. Queria do meu lado, além dos meus heróis, também os amigos frágeis e rachados, que me dessem trabalho para ajudá-los a colar suas partes, que tivessem paciência para me ajudar a remontar as minhas. Queria ouvir as vozes de novos amigos, saber qual a música de que mais gostam, ser lembrado no meio de uma tempestade, ter quem me ouça quando a chuva no telhado abafar o som silencioso do meu grito.

Hoje, deixo minha homenagem àqueles amigos que não me conhecem, dos que não sei onde moram nem eles têm noção da minha localização, de em que rua de mim estou. Deixo a saudade de quem só vejo passar voando, dentro dos carros, sempre atrasado para algum compromisso, apressado demais para perceber a existência dos que caminham pela calçada. Deixo um espaço vazio, além dos muitos que já estão muito bem ocupados, obrigado. Deixo meu endereço: moro bem ali, perto da estação onde você não desceu, ao lado da praça que você não visitou, nas linhas da poesia que você nunca leu, largado na prateleira que você deixou encher de poeira, dentro de um corpo que, antes de parar de respirar, espera conhecê-lo.

Finalmente, acima de tudo e saindo fumaça da chaminé, me deixo como ponto de referência. Para me encontrar, vire a esquina da avenida em que ainda sobrevivem os poucos sonhadores, os que andam como andarilhos, porque são considerados lunáticos, recitando baboseiras de Clarice e trechos estapafúrdios de Saramago. Envolto em cobertores de palavras e aquecido pelos versos de Chico, eu estarei te esperando.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Depressa demais

Embora eu não seja muito fã daqueles que usam Deus como um caminho para o estrelato e para conseguir alguns milhões à custa da fé do povo, confesso que o padre Fábio de Melo entrou para a lista dos pensadores que admiro. O discurso adotado pelo religioso é encantador: ele nos apresenta a um deus mais possível, digamos. O criador que o líder católico nos revela é menos rancoroso e mais parecido com as mães, não necessita de louvores 24 horas por dia para ser rei nem carece de tronos para governar quem quer que seja; está acessível na riqueza e no coração de quem ama, ao alcance de um abraço, sem burocracias ou honras demais para nos receber em seu colo.

Além disso, o lado escritor de Fábio de Melo também me fez admirá-lo. Li “Mulheres de aço e de flores” e “Cartas entre amigos”, dois livros que o padre escreveu, e gostei muito do que encontrei nas obras. Entre tantas, uma frase que desacelerou meu coração foi: “Eu queria te agradecer pelas inúmeras vezes que você me enxergou melhor do que sou. Pela sua capacidade de me olhar devagar, já que nessa vida muita gente já me olhou depressa demais”.

Bingo! O padre tocou em um ponto que a maioria das pessoas tem sido negligente: a pressa. Temos vivido apressados demais, sem tempo nem para resolver nossos assuntos pessoais, que dirá para olhar, com calma, para os lados, para quem nos cerca. A mulher é casada há dez anos, mas nunca reparou que, além da pinta no canto da boca, o marido também outras marcas que mancham seu sorriso. Dois jovens convivem num ambiente de trabalho e, embora se vejam todos os dias, nunca se repararam, nem sequer sabem que cor tem o olhar azul de quem parecia ter os olhos escuros. Olhamos depressa demais para os outros, nem sequer olhamos para nós mesmos.

Buscamos enriquecer a todo custo, deixamos de sonhar e só nos concentramos em comprar uma casa na praia, só pensamos em passar no vestibular, esquecemos de ir à conversa de pais na escola dos filhos para chegar a tempo numa reunião de negócios, abandonamos a poesia para conseguir ir à aula de inglês, deixamos de lado os amigos para não faltar à academia... Atropelados pelo tempo, encaramos as pessoas como se fossem páginas de jornal: basta uma olhadinha rápida para captar o “resumo da ópera” e olhe lá. O sorriso, as virtudes, os abraços, uma conversa pausada, enfim, tudo passa depressa demais diante de nossas janelas, como se viajássemos a 120 km/h pela vida e as paisagens ficassem embaçadas no exato momento em que passamos por elas.

Olhar devagar é perceber que sua filha pode até não cantar bem, mas daria uma ótima arquiteta. Olhar devagar é ter tempo para um amigo, que não vai te pagar por aquela conversa, no entanto, vai enriquecê-lo com jóias de verdade. Olhar devagar é insistir no sucesso daqueles que já desistiram, é se encarar no espelho e querer saber, sem pressa, quem ele está mostrando. Olhar devagar é notar o choro de quem parece sorrir, é observar sinais de temporal no horizonte daqueles que parecem fazer sol, é dar um stop e, frente à paisagem, contemplá-la, lentamente, como se os ponteiros do relógio de dentro tivessem parado e o tempo fosse nosso companheiro, e não um inimigo, como insistimos em vê-lo.

Mas, nem sabemos o que é stop. Vivemos olhando depressa demais, amando depressa demais, comendo depressa demais, esquecendo depressa demais, rejuvenescendo depressa demais, envelhecendo depressa demais, correndo depressa demais. Então, a vida passa num piscar de olhos, e, mesmo respirando, acabamos morrendo. Depressa demais.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Divisão de bens

“Olha: o amor pulou o muro/ o amor subiu na árvore/ em tempo de se estrepar./ Pronto, o amor se estrepou”*. Foi exatamente isso que aconteceu com o amor deles: se estrepou, caiu das alturas e quebrou as pernas, ficou aleijado e não conseguiu mais sair do lugar. Despencado o amor, partiu-se também o casamento e, enquanto fazem as malas, a dor se enfia entre as roupas mal dobradas, no meio das sedas amassadas, que jamais serão tão suaves novamente. Nenhum ferro vai ser capaz de desamarrotar estas dobras, de deixar lisas as marcas que cada um deles leva no armário de dentro.

Enquanto se despedem, dão também adeus a um pouco de si mesmos, porque sabem que jamais se reencontrarão consigo próprios, visto que uma parte de cada um ficará para sempre presa no olhar do outro. Passam-se os dias e chega a hora de assinar o divórcio. Durante os instantes em que vêem a tinta preta tomando forma no papel, se dão conta de que estão, na verdade, assinando uma forma de testamento, pois temem que, daquele momento em diante, a vida se torne morte, e, separados, eles acabem moribundos, mesmo com o coração ainda batendo.

Chega a hora da divisão de bens. Ela pensa: “Será que posso levá-lo na mudança?”. Não, não dá. Ele reflete: “Será que cabe uma mecha do cabelo dela no caminhão?”. Não, isso é grande demais para ser colocado fora. Eles entram na casa, vazia, e notam que é exatamente assim que se sentem: com o som desligado, com os cômodos sem ninguém, como paredes que, já sem quadros pendurados, parecem ter perdido a utilidade. A TV é dela, mas, enquanto levam o aparelho para o carro, a moça pensa: “Para que vai me servir esta televisão, se não poderei mais assisti-la ao lado dele, se nossas séries norte-americanas favoritas jamais voltarão a passar com a música de sua risada ao fundo. Quero me desligar, como um filme que termina bem no meio do enredo, como uma história que perde a graça porque o final não é o que todos esperavam. O que eu esperava”.

Já o sofá ficou pra ele. Enquanto os ajudantes colocam as últimas almofadas no caminhão, o rapaz pensa: “Para que vai me servir este sofá, se não poderei me sentar nele ao lado dela, se jamais voltarei a senti-la me abraçando esparramado nestas almofadas. Nada mais em mim vai ser macio como este assento, minha panagem está completamente desbotada, tenho as estampas todas borradas de lágrimas”. Quando chega na cozinha, ela se depara com sua geladeira, que já está sendo carregada. “Que graça terá o refrigerador sem a prateleira em que ele guardava as cervejas que ia tomar no futebol das quartas-feiras? Acho que um inverno começou em minha vida, parece que me enfiaram dentro desta maldita geladeira, só que não tem porta. Sinto que estou num congelador”.

Também na cozinha, ele observa o momento em que seu fogão é encaixotado. “Que graça terá o fogão sem ela cozinhando aquela omelete que eu adoro? Estou sem tempero, perdi o sal e o gosto, pareço só estar exalando um cheiro de comida estragada, de um prato que foi deixado de lado. Não tem mais calor na minha vida, o forno do meu coração foi apagado”. Enquanto desciam as escadas juntos, pela última vez, e terminavam a mudança, finalmente perceberam que divisão nenhuma no mundo compensaria a dor daqueles instantes. O bem maior já tinha se perdido. Naquele instante, souberam. O que eles queriam mesmo era poder se levarem inteiros.

* Trecho do poema ‘O amor bate na aorta’, de Carlos Drummond de Andrade.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Imaginação insone

Estou deitado, já é madrugada, mas minha mente insiste em não pregar os olhos. Parece que um carro acabou de estacionar na rua da minha casa... O motor foi desligado. Será que um casal de namorados está aproveitando a noitada para acender seus corações? Ou será que é um simples viajante, que parou pra descansar porque não sabe para onde ir? Deve estar perdido, assim como meus pensamentos. Ouço os ruídos do carro e, num piscar de olhos, me vejo dentro do veículo. Que estrada tomar? Que rumo seguir? Se fosse tão fácil decidir isso, eu já teria puxado o freio de mão e seguido em frente, não estaria enguiçado numa esquina qualquer, já teria dado gasolina aos meus sonhos. O carro ainda está lá na rua, mas minha mente já foi pra longe... Mais uma vez, avançou o sinal vermelho.

De longe, ouço cães latindo. Silêncio... Pode ser que um ladrão esteja invadindo a residência e o animal tenha se assustado, pode ser que eu esteja sendo violado e não tenha ninguém para rosnar por mim. Au, au, au! O cachorro não para de latir. Será que tem alguém estranho entrando na casa? Tem sim. Eu. Ou será o marido infiel que está voltando da gandaia, na pontinha dos pés, pra esposa não desconfiar? Ele, com o cheiro da outra; ela, que comprou um novo perfume e só queria ser sentida, sorvida junto com seu aroma. Será que ela vai ficar com a pulga atrás da orelha e descobrir a pulada de cerca? E eu, será que vou me descobrir? E dá-lhe latidas! Não paro de escutar estes sons... São de dentro ou de fora?

Escutei um carro passando na estrada. Suponho que seja de uma família, que vai curtir o final de semana em outro lugar... Ei, ei, me leva junto? Meu coração é imenso, mas acho que cabe no porta malas. Se não der, a gente o amassa pra caber, afinal, um arranhão a mais, um a menos, que diferença vai fazer? Vai, me leva. Eu quero tanto ir. Aliás, não precisa. Deixa pra lá. Acho que já fui, estou na estrada junto com os carros, me dirijo pelas curvas sem respeitar a velocidade máxima, estou a 100 por hora, será que vai dar tempo de virar, não sei tirar o pé do acelerador, se frear posso acabar derrapando, se for em frente posso acabar batendo...

O cão parou de latir e o carro que estava parado em frente à minha casa acabou de sair. O motor foi ligado novamente e, agora, ouço-o se distanciando, seus ruídos vão ficando cada vez mais inaudíveis. Qual será o próximo som da madrugada, que músicas ainda vou ouvir antes do sono me alcançar, que filmes ainda passarão na minha mente antes que a madrugada os apague? Escuto o som e imagino seus possíveis emissores, me coloco no lugar de cada um dos viajantes que vejo passar diante da janela, mergulho nas ondas sonoras emitidas por um dos passarinhos que se dependuram em minhas janelas. O que terá feito o cachorro ficar quieto? E a mim, e meu coração que não para de rosnar, quem vai calar? Para onde foi o carro que, poucos segundos atrás, estava há alguns metros de mim? Será que foi pra longe, seguido por meus pensamentos? Todos dormem, mas minha imaginação, sim, é que insiste em se manter acordada.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Carta para alguém que se foi

Você se foi numa manhã qualquer, em que vi o sol nascer no céu, mas se apagar dentro de mim. Não me lembro a hora exata, quantos minutos durou nossa última conversa, só o que sei é que cada um daqueles segundos me custou o tempo de uma vida toda... E de uma morte inteira também. Você partiu, e eu fiz o mesmo: continuei indo, andando, chorando, lamentando, sorrindo, fingindo, desbotando... Desde então, comecei a viver no gerúndio, sempre indo sem saber pra onde, como um piloto automático que assumiu o comando da aeronave porque o piloto dormiu no volante... Até hoje ainda não sei se estou acordado. Por favor, me belisque?

Aquele último adeus que você me acenou ainda não cessou de ser abanado em meu coração. Ainda te vejo de costas, meio de lado, virado pra trás, inclinado para a esquerda, sei lá de que jeito, só sei que não enxergo suas lágrimas nem me lembro se você estava sofrendo, talvez porque as minhas próprias estejam embaçando minha visão e me impedindo de enxergar um palmo na frente do nariz. Se eu ainda choro por sua causa? O tapa que você me deu continua gravado, latejando sem parar, a marca dos seus dedos continua vermelha em minha alma... Nem cinco anos, nem cinco encarnações serão suficientes para que o estalo dos golpes cesse em meus ouvidos. Alguém me empresta um CD novo? Estou cansada de ouvir sua voz.

Se nunca mais fui feliz? Seria muita pretensão sua acreditar nisso, né... É claro que fui, e é justamente isso que me incomoda: não consigo ser feliz por muito tempo. Quando penso que as nuvens se dissiparam de vez e que, finalmente, o Verão voltou de vez pra minha vida, surge de novo o Inverno, sem nem dar tempo de eu me preparar numa Primavera ou num Outono qualquer. Quando dou por mim, minhas folhas já estão ressecadas novamente, meus botões de rosas já deixaram de florescer, minhas pétalas já estão caindo, como se fosse você quem estivesse brincando de bem-me-quer, mal-me-quer... Que pena que nunca mais consegui eu ser a sorteada no bem-me-quero.

Não sei o que tenho a dizer, são muitos sentimentos levantando a mão e pedindo pra falar, tem ódio e amor juntos e misturados querendo a palavra, estou sendo interrompida por vozes minhas que desconheço, calma, calma, que gritaria é essa, hein, gente?! Fiquei histérica desde que você se foi, não bato bem das bolas, deixei de ser feijão com arroz e virei uma salada de frutas: azeda e doce, ao mesmo tempo. Mas, voltando ao que tenho a dizer, e que continuo sem saber, acho que vou cantar pra passar o tempo... Ah, eu já te contei que aprendi a desafinar em inglês? No cursinho, a primeira frase que aprendi a escrever foi “I love you”. Não, não era pra você... Ou era?

Não repare o exagero nas reticências que empreguei nesta carta, pois estes três pontinhos me refletem, são uma pista sobre o meu atual estado de espírito. Desde que você se foi, virei uma mulher reticente, uma frase incompleta que deixa mistérios no ar, uma sentença que termina no meio do nada, um verbo cortado... Olha as reticências de novo aí! Enfim, é melhor eu ir deitar, nem sei por que resolvi escrever este monte de besteiras, só o que sei é que continuo sem ter rumo, meu piloto automático também escangalhou, acho que vou bater... Tomara que, enfim, destroçado meu coração possa voltar a bater inteiro.

De quem ficou,

Guta

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Um a mais

Um dos traços predominante na sociedade “contemporânea” é o conformismo. Pode anotar que esta zona de conforto em que grande parte da população mergulhou é uma tremenda roubada. A maioria das pessoas anda acomodada com tudo, com dificuldades para se mexer, fingindo ser feliz num casamento falido, deixando de abrir a mente para arejar e afastar o cheiro de mofo, sufocando numa vida de janelas fechadas, nem aí pros escândalos na política, achando cada vez mais normal o que sempre vai me cheirar a problema. Tem frases que expressam esta minha tese com clareza.

Estou zanzando pelo supermercado, passo por duas amigas conversando e ouço uma delas alardear: “Menina, um jovem morreu assassinado, hoje de manhã, pertinho da minha casa”. Com cara de paisagem e parecendo que acabara de ouvir simplesmente o preço do pão de sal, a outra respondeu: “Ah, este tipo de coisa acontece toda hora. Já estou até acostumada. É só mais um, amiga. Mas, então, o que vamos fazer hoje à noite?”.

Doido para me intrometer, passei batido da cena, porém, minha vontade foi cutucar os ombros da tal “menina” e falar: “Sinto lhe dizer, querida, mas não é só um a mais. É um ser humano a menos no mundo, é mais sangue sendo derramado, é menos um sonho, é mais uma mãe desesperada, é menos um voto para provocar mudanças, é mais uma chance de a violência chegar na sua casa, é menos falta de consciência da sua parte pensar deste jeito”.

Acomodados com as tais manchetes dos jornais, estamos nos acostumando a achar normal o que deveria nos preocupar – e muito. Vêm os escândalos na política e exclamamos: “É só mais um!”. Descobrimos que o filho de fulano de tal só quer saber de cocaína e pensamos “É só mais um!”. Lemos que morreu mais uma vítima das balas perdidas e fazemos pouco caso: “É só mais uma”.

E se o tiro fosse num filho da gente ou no da melhor amiga? E se o dinheiro que roubaram do idoso fosse o que você está juntando para comprar a sua casa própria? E se você não percebesse que seu próprio filho se viciou nas drogas, enquanto você só pensava em esmaltes e em quantas calorias tem um brigadeiro? E se a atual crise no Congresso Federal impedir o aumento do seu salário? E se os seus sonhos forem por água abaixo por causa do mais um de ontem? E se o mais um de amanhã for alguém que amamos? Talvez, se isso acontecer, teremos menos um motivo para pensar desta forma acomodada, para deixar de ver a vida desta poltrona egoísta e desta sacada de onde só o que nos convém pode ser enxergado.

Cada um a mais que se vai é um pedaço da nossa dignidade, é o escárnio da moral em praça pública, é o triunfo de uma política que pesa a mão para uns e a abre, generosamente para outros, é um braço a menos para remar neste barco furado em que, acomodados e confortáveis, continuamos navegando. Quando a coisa piorar e acabarmos naufragando, o um a mais seremos nós.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Canção da eternidade

Já sei o que vou querer tomar amanhã bem cedinho, no momento em que eu acordar: a quentura da sua lembrança, forte como café que deixa o gosto na boca. Daqui a algumas décadas, quando meu paladar não for mais capaz de distinguir o gosto das coisas, vou continuar sentindo seu sabor, pois seu gosto nunca se apagará de minha lembrança. Caminhando com lentidão e apoiado por uma bengala, seguirei desejando manhãs doces, ensolaradas como aquelas em que, mesmo chovendo, você abria o tempo de minha vida.

Se o tempo levar com ele a minha visão, não vou resmungar, desde que eu nunca seja impedido de te enxergar dentro de mim. Ainda que o clarão dos meus olhos voe pra longe com as folhas do calendário, verei o brilho dos seus, lembrarei de como sua boca se desenha ao sorrir, recordarei suas expressões faciais. Se a idade me trouxer, juntamente com os anos, a cegueira, continuarei tendo um coração vigilante e atento. Nele, seu rosto viverá para sempre pendurado, emoldurado em tintas que anos nenhuns vão ser capazes de desbotar. Ainda que minha pupila seja invadida pela escuridão, meu olhar não te perderá de vista. Você continuará sendo a luz dos meus olhos, mesmo que eles se apaguem.

Talvez minha audição comece a falhar quando eu tiver quase um século de vida, mas o som da sua voz permanecerá sendo reconhecido a quilômetros de distância. Caso as rugas me apresentem também a surdez, meus ouvidos nunca ficarão vazios de música, porque você vai estar cantando dentro deles. Canções de todo tipo, as gargalhadas que demos, nossas conversas, as estrofes que inventamos, as melodias que embalavam nossos momentos, hinos silenciosos que compomos em homenagem à vida, enfim, você será sempre uma caixinha de música em meus tímpanos, um som da natureza, o passarinho que canta na janela e anuncia uma nova esperança.

Quando minha mente começar a ratear e eu me esquecer até de mim, ainda neste dia me lembrarei perfeitamente do seu nome, saberei escrevê-lo de cór e salteado, vou me recordar de tudo que você me faz sentir. No alto dos meus 70 e blá, blá, blá, não quero ter acumulado bens materiais nem milhões em reais numa conta bancária. Desejo tão somente a simplicidade das suas palavras de ouro, do seu ombro – já frágil – para eu chorar, das suas mãos ricas em sabedoria para me ajudar a subir uma escada, da sua voz rouca e valiosa para relembrar da juventude, que não terá se apagado.

Terei rugas por toda parte, meus pés vão falhar ao tocar o chão, as palavras fugirão de mim no exato instante em que eu precisar dizê-las, minha memória vai estar fraca e na penumbra, minha voz soará cansada e envelhecida. Mesmo assim, continuarei jovem e com a alma de menino, brincando contigo em meus jardins floridos. Hoje, sou eterno, pois cultivo a esperança de que quando a juventude e os cabelos escuros forem só uma lembrança, você ainda esteja por perto para livrar-me do envelhecimento do coração.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

O inimigo

Ele está à espreita, só esperando que você abra a porta. Aliás, mesmo com as fechaduras trancadas, pode ser que ele arrombe as entradas e te invada, exatamente no momento em que você parecia começar a vencê-lo. Ele é esperto, malandro, se achega devagarzinho, vem comendo pelas beiradas e quando você percebe, ó, já era... Crau! Foi engolida por ele.

Geralmente, ele se torna conhecido assim: no meio de amigos que já foram dominados e te induzem a também se apaixonar, no ambiente de trabalho, nas salas de aula, escondidos dentro do banheiro. Depois de se fazer de amiguinho, você descobre que o inimigo não é flor que se cheire. Por mais que você o expulse, ele insiste em te infernizar.

Na primeira vez que brigaram ou que ele te fez sentir sintomas de cansaço, você achou que seria mole viver longe de algo que, claramente, já não lhe fazia mais bem. Mas ele te seduziu, fez você cheirá-lo de novo, ingerir um gole de seu prazer. Não adianta negar: ele lhe roubou as chaves de si mesma, tomou o volante de suas mãos, te empurrou pro banco do carona. Sim, baby, é o inimigo quem está no comando. Por mais que você relute, ele te envolve numa fumaça de mistérios e lhe põe aos pés dele. Você é um escravo sem juízo, um barco à deriva, alguém que pulou de pára-quedas e não sabe onde poderá pousar com segurança.

Quando ele fez com que seus amigos se afastassem de você e levou até sua família à desgraça, você decidiu que estaria tudo, tudo acabado. Fez as malas, mas esqueceu-se de que ele é duro na queda. Sem que você tenha notado, ele se enfiou no meio de suas roupas, chafurdou sua vida, grudou em seus livros, tatuou-se em seus sentidos. Sim, baby, é o inimigo quem está dando as cartas. Ele tem uma trinca de ases nas mãos e para vencê-lo vai ser preciso que você invente outros naipes. Nem copas, nem espadas. Você precisará ser de ouros para derrotá-lo.

Finalmente, depois de perder tudo que tinha pra ele, até mesmo a saúde e a felicidade, você resolve admitir que precisa de ajuda. Também, pudera: poucos vencem, sozinhos, a guerra contra este inimigo. Enfim, você corre atrás de aliados, procura trazer mais gente para o front de batalha, se arma, vai para baladas tentando esquecê-lo, evita o cheiro do infeliz, foge das lembranças dele. Ataca tudo que está fora, sem perceber que o verdadeiro bombardeio está acontecendo por dentro. É no coração e na mente que as granadas do inimigo estão botando tudo pelos ares.

Aí, você descobre que este tempo todo o inimigo não era apenas o cigarro, nem a bebida, nem um amor mal compreendido, nem as drogas, nem a dependência de comprar, nem a comida. Eram também o vício e o que você não tem feito de sua vida.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Mundo interno

Mesmo acompanhando apenas de longe, sempre admirei o trabalho da cantora e compositora italiana Laura Pausini. Mais recentemente, adquiri um CD da artista, que, por sinal, acho que já deve estar furado: não consigo parar de ouvi-lo. Só agora percebo o quão talentosa ela é. Com sua voz noturna e canções que são tão musicais quanto poéticas, Laura me seduziu, me fez ter vontade de aprender espanhol, de dobrar a língua e desafinar, enquanto ela soa doce como uma flauta.

Elogios à parte, uma das músicas de seu repertório me chamou mais atenção. Trata-se da faixa “Antes de irte”, que tem alguns simples versos capazes de nos fazer grudar os ouvidos... no coração. “O que você sabe de um mundo interno que não vê? Se serei forte ou chorarei? O que você pode saber?”, questiona Pausini durante o refrão da canção.

O que podemos saber dos outros é o pouco que deixam vazar, são rélis paisagens, aperitivos de seu mundo interno, é uma centelha do universo que trazem dentro de si mesmos. Sabemos dos sorrisos, mas nem sequer desconfiamos das lágrimas choradas em plena noite de sábado, dos relacionamentos que apodreceram quando pareciam amadurecer, dos troféus perdidos no momento em que a vitória já era dada como certa, das sementes que não vingaram, dos amores que terminaram antes da hora, dos sonhos que viraram pesadelos.

Cada ser humano é habitado por um mundo interno que telescópio nenhum permite ver. Às vezes, esta Via Láctea fica mais longe do que imaginamos, a milhões de quilômetros de distância do nosso alcance, de modo que somente o foguete de um olhar amoroso teria chance de nos levar até lá. Neste nosso planeta, existe a grande dificuldade de aceitar os alienígenas, pois temos medo de que eles descubram nossas riquezas e as destruam, de que roubem nossas estrelas, de que cortem nossas árvores e locais de sombra, de que tornem nosso céu escuro e sem oxigênio.

Buscando fugir da degradação de nossa própria sustentabilidade, escondemos as aves raras de sentimentos que voam dentro de nós, secamos nossas fontes de petróleo, tornamos o mar de nossas vidas salgado demais, apenas para impedir que alguém sobreviva nele. Há preciosidades em nós, mas, ao passo em que as exterminamos, a gente é que entra em extinção. Não se revelar também é uma pequena morte.

Quantos de nossos sentimentos já mofaram por falta de ar puro? Quantas vezes já não nos sentimos sufocados ao fechar portas e janelas, bloqueando o acesso dos outros ao nosso mundo? É claro que cada pessoa tem o seu “infinito particular” sagrado, um altar que é só vitrine pra fora, onde só entra quem for convidado. Restringir os selecionados é essencial, pois sair convidando todo mundo é coisa de gente triste. Porém, o que fazer com nosso mundo interno sem ninguém para habitá-lo? Eis o nosso paraíso, o Éden de cada um. Que sejam bem vindos aqueles que não quiserem profaná-lo.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Daqui pra frente

Daqui pra frente, não volto mais atrás. Chega dessa mania de rasurar minha palavra para que alguém possa subscrevê-la, desse velho hábito de deixar que os outros atropelem a minha felicidade e a deixem estirada no chão. Nada de lamentar o passado, pois ele não pode ser mudado. O que dá pra fazer é reescrever no presente as correções para as falhas cometidas, na tentativa de construir um futuro mais amplo e arejado. No calendário da minha vida, o hoje passará a ser o dia mais importante, porque ele é a melhor ponte para um amanhã melhor.

Daqui pra frente, vou abrir as janelas de mim. Quero sentir-me fresco, deixar o vento correr solto em meus cômodos, ver folhas bagunçadas se espalhando pela sala. Meu desejo é o de cuidar das flores que ponho em minhas janelas: elas é que definem que passarinhos virão me visitar e quantos deles vão sentir-se à vontade para morar comigo. Quero acordar mais cedo e, ao invés de ser recebido pelo sol, eu mesmo irei recepcioná-lo, só para garantir que meu sorriso não perca o brilho nem deixe de transmitir raios ultravioletas. Tenho a missão de não deixar que os invernos me endureçam, mas também de me conscientizar que, se for necessário, terei que encará-los de frente. Para isso, precisarei de agasalhos, de pessoas e livros que me aqueçam até que o verão chegue novamente.

Daqui pra frente, aprenderei a pintar. Mesmo que eu não use pincéis nem tinta óleo, vou jogar cores na vida daqueles que amo e, principalmente, no mundo desbotado dos seres em preto e branco que encontro pelo caminho. Numa vida qualquer, quero desenhar um sol amarelo e, com cinco ou seis retas, aproveitar e transforma-lo em um castelo. Serei um aprendiz na arte de rabiscar aquarelas, ainda que ninguém as veja e eu corra o risco de ser borrocado. Minhas paisagens serão retocadas com gestos e esperanças, e não com lápis de cor. Quero aprender a gravar sonhos na parede do coração das pessoas.

Daqui pra frente, serei como uma caixinha de música para quem resolver me abrir. Vou dançar e cantar, suavemente. Com tranquilidade e segurança, vou ficar girando, sem ir pra lugar nenhum, apenas para emprestar um pouco de ritmo aos olhos estáticos que estiverem me observando. Quero me tornar um espetáculo ou, ainda mais humildemente, ser um porta jóias, onde as pessoas sintam-se à vontade para guardar parte de suas riquezas, para depositar o que lhes restar de confiança. A gente de bijuteria vai adquirir a sabedoria e o amor necessários para ser de ouro, e eu quero estar cantando e dançando para poder acompanhar isso.

Daqui pra frente, vou escutar mais, falar somente o necessário, me alimentar mais do silêncio, descortinar minha alma, polir meu bom humor, deixar as lágrimas correrem soltas pela face, mesmo correndo o risco de ser piegas, mesmo parecendo que estou mexicanizando a cena.

Se conseguirei cumprir minhas metas, não sei... O que garanto é que, daqui pra frente, vou pelo menos tentar.

terça-feira, 19 de abril de 2011

A paixão de todos nós

Contrição, agonia, dor, redenção. Palavras que evocam uma sensação de silêncio são sempre mais utilizadas para definir os traços de expressão dos dias da Semana Santa. Na tradição católica, a época marca os últimos momentos da vida de Jesus, os instantes finais de seu caminho rumo à cruz. Do encontro com Maria à instituição da Eucaristia, Cristo vai passando pelos últimos minutos de sua vida, que já eram, em si, a antecipação do próprio calvário.

Nós também, dia a dia, vamos vivendo pequenas e grandes paixões, sofrimentos que duram muito mais que três dias, espinhos que nos fazem chorar lágrimas de sangue. Há aqueles que são feridos pela crucificação de seus sonhos. Sobem as ladeiras da vida com suas cruzes pesadas sobre os ombros, sem saber em que monte serão, finalmente, pendurados ou em que lugar algum bom Cirineu os ajudará na escalada. Esses, sofrem com o deboche dos que pensam ter conseguido a glória, mas que, no fundo, não passam apedrejadores de si mesmos.

Há aqueles que carregam coroas de espinhos por dentro, chagas que não são visíveis a olho nu. As palavras deles são amargas como vinagre e suas desilusões transformam-se em lanças, que são mais perigosas do que qualquer arma de fogo. Eles têm a verdade da mentira estampada no rosto e, com um beijo na face, são capazes de trair quem mais os ama na vida.

Há aqueles que trazem, pregadas no coração, esperanças. Querem se transformar em alguém que possa enxugar o suor do rosto cansado dos caminhantes, mas para isso precisam da promessa do paraíso, do perdão no momento em que só a morte era aguardada. Esses, erraram muito, mataram muitos sorrisos e sepultaram asas, no entanto, desejam tornar a sujeira de suas águas no vinho da salvação. Derramaram sangue e viram inocentes pagarem por crimes que não cometeram, e, hoje, têm a intenção de não lavar as mãos nos momentos em que, para fazer o que é certo, for essencial sujá-las.

Há aqueles que, sem escolha, se lançaram, por conta própria, às mãos de quem irá negá-los antes mesmo que o galo cante três vezes. Há os que se doam aos pés de nossas cruzes. A esses, a gratidão eterna está garantida.

Paixões essas, umas pequenas, outras gigantes, todas eternas. Sepulcros escuros, para onde somos lançados antes da hora, cheios de medo, inseguros, muitas vezes sem motivo. O que nos resta é o esforço e a prece para que, num terceiro dia qualquer, também nós possamos ressuscitar.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

De repente, crianças

Fiquei em estado de choque quando recebi a notícia de que a mãe de uma colega minha – a quem chamarei de Helena – havia morrido. Tratava-se de uma jovem senhora, não mais de 50 anos, que passou 67 dias em coma, após duas cirurgias de alto risco, e, num chiste, os aparelhos apontaram que a vida dela havia, enfim, se desligado. Como assim? Ei, ei... Por acaso, a senhora se esqueceu que ainda não aprendeu a bordar como queria, que a receita daquele bolo ainda não foi treinada, que ainda não terminamos a reforma da casa, que ainda preciso do seu beijo para dormir? Basta um segundo e, de repente, nos vemos crianças novamente.

O aperto que sinto no peito me fez lembrar uma passagem do livro “Divã”, escrito por Martha Medeiros, em que a protagonista Mercedes narra um caso a respeito deste sentimento. “Uma vez, uma amiga minha, mulher feita já, com mais de 30 anos, tinha ido com a irmã visitar um tio ao hospital e ele, repentinamente, faleceu na presença das duas. Elas ficaram sem ação. Viraram-se uma para a outra e a minha amiga disse: precisamos chamar um adulto. Quando ela me contou, nos fartamos de rir, mesmo entendendo essa sensação de orfandade. Na verdade, não importa que idade tenhamos, há sempre um momento em que é preciso chamar um adulto”. Helena deve estar precisando muito de um adulto neste momento.

A grande verdade é que, diante da morte, todos nos tornamos imponentes, frágeis, pequenos. Toda auto-suficiência que acreditamos ter vai pras cucuia e, aí, nos escondemos atrás da porta, choramos agarrados a um ursinho de pelúcia, ficamos com medo de ir à rua sozinhos. A mãe de Helena se foi e, em questão de segundos, ela voltou a experimentar a infância, a brigar para não sair do banho, a se agarrar a fotos, a querer ficar bem dentro. Dentro de si mesma.

Mãe, onde está o meu secador de cabelo? E aquela minha roupa de ir pra faculdade, já está passada? Eu não acredito que a senhora se esqueceu de lavar minha calça! Faz bolinhos de chuva pro café de amanhã? Nunca mais quero ver a cara dele, mãe, nunca mais... A partir de agora, quem ouvirá os desabafos de Helena? Quem a amará acima do bem e do mal? Minha colega deve estar precisando de um ombro amigo, de companhia, mas não a minha, e, sim, a da mãe dela. Chamar um adulto? A dor é tão grande que, por instantes, nos esquecemos de que não temos mais idade pra isso.

Um medo, uma desilusão, um momento de fraqueza, a morte e, de repente, crianças. Escondidas embaixo da cama, mexendo nas coisas dela, chorando copiosamente, fazendo pirraça com a vida, tendo pavor de ficar sozinhas em casa, sentindo medo do escuro. Se acalme, Helena, tente ficar tranquila. Logo, logo, alguém virá acender a luz.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Sobre promiscuidade

Nos últimos dias, o nome do deputado federal, Jair Bolsonaro, tem estado – merecidamente, diga-se de passagem – na boca do sapo. O motivo de tanto estardalhaço são as declarações com alto teor de racismo e homofobia que ele vem disparando. O político ofendeu a cantora Preta Gil em plena rede nacional e, como se não bastasse, feito criança pirracenta, bateu pé, insistindo que sua posição está correta. Bolsonaro perguntou à Preta quem ela era pra falar sobre promiscuidade... Agora, deputado, sou eu quem o questiono: quem o senhor é pra falar de promiscuidade?

Promiscuidade é o que muitos seres da sua laia fazem com o poder que tem em mãos, transformando um bem de todos num privilégio para poucos. Chamo de promiscuidade a venda da moral e da verdade, comércio que acontece, livremente, nos bastidores do congresso que o senhor Bolsonaro costuma freqüentar. Qualquer tostão paga o silêncio, qualquer centavo passa a conta pro povo pagar – e caro! – por tanta safadeza, vivendo sem dignidade nem condições básicas de Saúde, Educação e Desenvolvimento. O preço do desvio de verbas e dos cargos fantasmas dói no bolso de quem não tem nada a ver com essa sujeirada toda. Isso, sim, é promiscuidade.

Os políticos brasileiros estão longe de ser exemplo, pois boa parte deles não hesita em corromper a democracia do país, manchando com vermelho-sangue o verde que devia ser de esperança. A imensidão do azul-anil é assassinada pelo preto-luto, escuro que cobre toda extensão da bandeira nacional quando escândalos e quantias armazenadas em cuecas matam os sonhos da nação, sonhos esses simples, sem grandes pretensões: apenas os de ver um Brasil sem a face deformada, um país sem grades nas leis, um Brasil que não nos assuste quando mostrar sua verdadeira cara.

Ó, deputado Bolsonaro, que grande piada o senhor contou! Enquanto vossa excelência se preocupa em exterminar a moral de negros e homossexuais, seus colegas de bancada fazem a festa, os bandidos assopram vidas nos morros, no exato momento em que a podridão do sistema produz, em série, novos indivíduos que nem chegarão a se tornar seres humanos. Não se preocupe tanto com os afros-descendentes e com os gays, há tantos assuntos mais relevantes esperando pela sua atenção, como, por exemplo, a implementação da Comissão da Verdade, que terá como objetivo esclarecer casos de violação de direitos humanos (entre eles, torturas, mortes, desaparecimentos e ocultação de cadáveres), ocorridos entre 1946 e 1988. Ah, não, me esqueci que o senhor apóia e faz apologia à Ditadura Militar.

Apoiar a morte de inocentes, fomentar a agressão de filhos “meio gays”, se pronunciar a favor do assassinato de mais presos no extinto Carandiru, defender a pena de morte, adotar métodos de tortura para corrigir indivíduos que o senhor, com sua omissão, ajuda a colocar no tráfico de drogas, enfim, todas essas posturas adotadas, por vossa excelência, é que são sinais de promiscuidade.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Se eu soubesse

Se eu soubesse que você é tão desumana, jamais teria vindo trabalhar ao seu lado. Como pode alguém se sentir tão superior, a ponto de achar que tem o direito de posse sobre o outro? Ninguém nos possui, muito menos os patrões.

Se eu soubesse que sentiria tanto a sua falta, nossa separação não teria acontecido. Não imaginei que a cama ficaria espaçosa demais pra eu dormir sozinho, que minha vida ficaria pequena demais para eu viver nela sem você. Nessa subtração que fizemos, tenho somado dores e, infelizmente, não tenho com quem dividi-las. Me transformei numa vírgula, sirvo apenas para respirar.

Se eu soubesse que o nosso casamento seria tão ruim, essa aliança nunca estaria no meu dedo. Não foi com a mulher que estou vendo que entrei na igreja. Na hora das juras, você se esqueceu de me prometer que seria você mesma, e não essa pessoa egoísta que vejo em minha frente. Será que você se jogou junto com o buquê? Te desconheço, parece que você casou, mudou e nem me convidou.

Se eu soubesse que meu futuro era ser um viciado, jamais teria fumado o primeiro cigarro. A cada trago, minha alma se transformou em cinzas. Agora, que as drogas destruíram minha vida, parece que meu cérebro virou palha. Fui fumado pela cocaína, virei fumaça e, aos poucos, me desmancho pelo ar. Sou um balão de gás... Cai, cai balão... Bum! Caí.

Se eu soubesse que conseguiria me livrar do vício, já teria iniciado este tratamento a mais tempo. Muito obrigado, doutor, Deus, amigos, família. Sem vocês, meus dias continuariam sendo de loucura e destruição. Muito obrigado, eu, por não ter desistido de mim mesmo.

Se eu soubesse que minhas palavras te machucariam tanto, teria pensado melhor antes de dizê-las. Sei que os tiros já foram disparados, mas há algo que eu possa fazer para reparar os estragos? Não foi justo o que fiz contigo, você foi mais uma vítima de minhas balas perdidas. Preciso acalmar minha língua, pois ela anda promovendo tiroteios. Se eu não me cuidar, acabarei virando uma assassina.

Se eu soubesse que era tão fácil pedir perdão, você teria sido procurada há muito tempo. Por que temos tanto medo de assumir que erramos? É melhor fazer curativos do que escrever epitáfios. Hoje, sinto que estamos preparados para recomeçar. Me arrependo tanto de ter te crucificado a troco de nada! Por isso, agora, quero que tirar os pregos da nossa relação, curá-la dos espinhos. Tenho certeza que ressuscitaremos ao terceiro dia.

Se eu soubesse que você iria mesmo embora, teria dito, ontem, tudo que tive vontade de dizer. Não dá mais tempo, já passou. O que calei vai gritar para sempre dentro de mim, as palavras que eu nunca te disse continuarão ressoando em meus ouvidos. Nunca tive coragem de assumir, mas te amo. Ouviu? EU TE AMO! Que pena que você não me escuta mais.

Se eu soubesse.

terça-feira, 29 de março de 2011

A beleza do patinho feio

Conheço um lindo patinho feio. Mesmo sendo diferente dos belos cisnes – estando aí seu arco íris –, pois possui um corpo gordinho e rechonchudo, a beleza dele é a mais verdadeira de todas. O patinho feio é naturalmente bonito, de modo que não depende de aparências para ser legitimado como tal. O problema é que ele, cansado de ser desprezado, decidiu que quer ser como os outros: um cisne magro, que logo de cara chame a atenção, que não precise de esforços para ser elogiado nem querido.

O patinho feio que conheço tem esperanças geladas, tanto que, transformadas em gelo, elas derretem quando expostas ao sol da realidade. Detesta espelhos, pois o enfrentamento com sua própria imagem o coloca em um ringue contra si mesmo, e, este duelo, o patinho sabe que não pode vencer. Tudo que o lembra a respeito de suas curvas é rejeitado, porque ele não acredita que alguém possa amar uma fera ferida enquanto há tantas belas por aí.

A poesia de seu olhar toca a paisagem ao redor, deixando tudo colorido, no entanto, dentro dele há páginas empoeiradas e envelhecidas, às quais ele se agarra, pois acredita que são um meio de voltar a ser o que ele nunca foi um dia. O patinho feio cresceu ouvindo que era diferente dos demais e acatou as rasuras como verdade. Por isso, ele detesta que mintam pra ele. No fundo, sabe que bastam as farsas que ele mesmo inventa para sobreviver, como se fosse impossível suportar o peso que acha que tem.

O sonho do patinho é ser magro e robusto como seus amigos, é ser escolhido numa vitrine, pinçado entre tantos bichinhos de pelúcia. Ele estava cansado da solidão da prateleira, de viver encoberto. Ao mesmo tempo em que rejeita os sorrisos de plástico e combate as vidas descartáveis, estando aí sua maior beleza, o feio mais belo que conheço tem o desejo de chegar às alturas e ser coroado com as estrelas, de subir na lua e, lá, ganhar apenas um abraço. Hoje, ele tem a companhia de um outro pato, que ele mais do que tudo na vida, pois o enxerga como um foguete, como uma possibilidade de ir até o infinito.

Este patinho carrega a chave de todas as belezas dentro de si, tendo-as guardadas. Sabe os segredos do universo e surfa com as palavras, mas tem medo de se afogar nessas ondas. Ele voa, voa... E, de repente, chora como se seus olhos fossem nascentes, de onde, milagrosamente, brotam lágrimas doces. Tem as asas mais belas que já vi: sonhos e imaginação.

Quem me dera conseguir contar ao patinho feio o quanto ele é de ouro e de nuvens, o quanto me alegro e me orgulho de seus dons de anjo, o quanto faz milagres com o olhar, o quanto muda destinos, o quanto é belo e feito de chuva, o quanto ele é querido por um belo cisne que, por amor, se transformou em pato, enfim, o quanto me sinto feliz e abençoado por ser ele.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Jejum de que?

Foi dada a largada para a temporada de jejuns. Milhares de cristãos conservam a tradição, consolidada pelo Catolicismo, de se abster de algo ao longo da Quaresma. A maioria dos adeptos da ideia costuma deixar de comer carne durante os 40 dias desse tempo. Mesmo sendo católico de carteirinha, não entendo as bases desse costume do modo como o vejo sendo colocado em prática. As pessoas não comem bifes nem picanha, mas continuam se alimentando da vida dos outros, deforando a carne alheia. O jejum, no fundo, é de que?

“O verdadeiro jejum tem como finalidade comer o alimento verdadeiro, que é fazer a vontade do Pai. Ele deve servir para mortificar nosso egoísmo. Na época atual, o jejum perdeu um pouco seu valor espiritual e adquiriu mais, em uma cultura marcada pela busca do bem-estar material, o valor de uma medida terapêutica para o cuidado do próprio corpo”. Palavras do Papa Bento XVI. Fatalmente, o jejum ganhou ares de dieta: deixa-se de comer carne para evitar as calorias, e não pra valorizar a reflexão em detrimento da ausência do material. A vontade de Deus fica pra depois, enquanto priorizamos nossos desejos pessoais.

O jejum é um instrumento de aproximação com a esmola e com a oração, uma forma de contemplarmos o vazio e, dele, extrair pedras preciosas. Devemos jejuar para transformar o silêncio em ação, para que o egoísmo seja mortificado e a carne de dentro ganhe um novo aspecto, menos sangrado e mais vigoroso. Não adianta nada evitar gorduras, pizzas, excesso de doces e churrascos se o exagero de fartura continua minando de nossas atitudes, se continuamos ferindo quem amamos, se não curamos as feridas dos que sofrem, se não deixamos cicatrizar a dor de quem nos pede perdão, se permanecemos matando os sonhos uns dos outros.

Os rostos e corações machucados provam que nossos jejuns não passam de fachadas, pois não produzem o milagre de ressuscitar brilhos no olhar e sorrisos sepultados. O alimento verdadeiro é a vontade do Pai e só pode ser comido quando a vida se transforma em um prato cheio de amor, fraternidade, paz e esperança. Nossa fome de justiça é que precisa ser saciada. Caso contrário, até a sexta-feira da paixão muitos outros inocentes terão sido crucificados ao lado Cristo.

terça-feira, 8 de março de 2011

Mulheres artificiais

Se até o início da década de 30 as mulheres brasileiras não tinham nem direito ao voto, o ápice da vitória desta classe é que, hoje, uma delas é a presidente do país. Sem dúvidas, elas estão no poder e há muito tempo já deixaram de lado o rótulo de “sexo frágil”: elas dirigem, elas fazem compras, elas disputam de igual pra igual com os homens no mercado de trabalho, elas são bem sucedidas, e, ainda assim, elas são mães, medrosas, vitoriosas, mulheres.

Mesmo diante de um quadro marcado por grandes avanços da classe feminina, um detalhe me assusta: a quantidade de individuas que estão se deixando fabricar-se em laboratórios. Mulheres que não assumem a idade e se tornam inimigas do tempo, lutando contra ele por meio de cosméticos, cremes, bronzeamentos artificiais e plásticas. Não sou radicalmente contra os artifícios adotados para retardar um suposto “envelhecimento”, mas me preocupo com a deformação que eles estão provocando na vida de muitas dessas vencedoras. De maquiagem em maquiagem, o verdadeiro rosto vai ficando soterrado embaixo do pó e do blush, até que um dia ele se esquece como abraçar os outros.

“Uma mulher bonita não é aquela de quem se elogiam as pernas ou os braços, mas aquela cuja inteira aparência é de tal beleza que não deixa possibilidades para admirar as partes isoladas.” A autoria da frase é atribuída ao filósofo Sêneca e ela cai como uma luva para a reflexão que se faz pertinente em meio às comemorações de mais um Dia Internacional da Mulher: depois de terem conseguido, finalmente, um lugar ao sol, por quê elas não o aproveitam cada vez mais? O exagero da vaidade está descolorindo a obra de nossas guerreiras.

Que graça têm frutas de plástico? Nenhuma, pois perdem o sabor e o viço, ficam sem paladar e transformam-se em peças artificiais, que só são bonitas quando vistas de longe. Assim também ocorre com as mulheres: quando se tornam de cera, derretem quando estão em frente ao espelho. O olhar, lotado de rímel, deixa de possuir a singeleza da flor do campo, e, sem pétalas, perde o brilho. Os lábios carnudos, desenhados com plástica, podem até representar o padrão estético do século XXI, mas não expressam a verdade do que fora substituído.

A luta das mulheres até aqui foi gigantesca para que elas permitam que tudo se resuma a sombras e apelo sexual. Tanta pintura está fazendo com que as obras de arte, antes belas e atraentes, caiam na situação deplorável dos muros pichados. Rugas, marcas, estrias e celulites não são mais perigosas do que a possibilidade de ter um rosto tão artificial quanto uma fruta de mesa.