quarta-feira, 27 de julho de 2011

Quem matou Amy?

A morte de Amy Winehouse virou o prato principal da semana. Principalmente nos programas de televisão, os degustadores de uma boa tragédia começaram a surgir de todos os cantos, lançando mão de seus recursos culinários para dar seus pitacos sobre o motivo que ceifou a vida da cantora britânica. Diante dos comentários que ouvi acerca do fato, até então, apenas um me cheirou bem: o do colunista da Folha, João Pereira Coutinho – os outros se pareceram mais com oportunismo.

“Morreu Amy Winehouse e os moralistas de serviço já começaram a aparecer. Como abutres que são. Não há artigo, reportagem ou mero obituário que não fale de Winehouse com condescendência e piedade. Alguns, com tom professoral, falam dos riscos do álcool e da droga. (...) O sermão é hipócrita e, além disso, abusivo. Começa por ser hipócrita porque este tom de lamentação e responsabilidade não existia quando Amy Winehouse estava viva e, digamos, ativa. Pelo contrário: quanto mais decadente, melhor; quanto mais drogada, melhor; quanto mais alcoolizada, melhor”, escreveu.

O colunista me despertou para uma nuance que passara despercebida aos meus pensamentos. Os mesmos fãs que, hoje, choram a morte de sua diva, fizeram questão de vaiá-la, sem dó nem piedade, num show que ela realizou na Sérvia, há pouco mais de um mês. Juntando este fato com as palavras de João Pereira, cheguei à conclusão de que enquanto a cantora estava no centro do picadeiro, fazendo a alegria da platéia por meio de quedas vexatórias e piruetas motivadas pelo álcool, ninguém se mostrava preocupado com os sentimentos dela nem com suas crises existenciais. Pelo contrário. Amy era enxergada como uma espécie de mulher gorila, que estava no espetáculo circense da mídia apenas para divertir o público e aumentar a vendagens de revistas e jornais. Nem de longe a artista era encarada como um ser humano.

Assim, me pergunto: quem matou Amy? Será que fomos nós? Talvez, assim como ajudamos a matar um amigo que, de pileque, é incentivado a tornar-se o palhaço da turma. A galera ri e acha graça dos tombos do colega bêbado, até ele ser atropelado enquanto ia pra casa e morrer ou ter uma cirrose. Aí, então, o Fulano vira vítima e nós nos inocentamos, lançando ao cadáver olhares cheios de piedades, aqueles mesmos que, horas atrás, só estampavam deboche e um leve desprezo. Ou será que quem matou Amy foi o discurso daqueles que incentivam a matança nos presídios e zombam dos assassinos que são tratados como bicho, desprezando que seus filhos também matam gays e sonhos pelas ruas?

Fico pensando na hipocrisia e no abuso que tomam conta de nossas vozes quando lamentamos a morte de Amy Winehouse, mas continuamos contribuindo para que “outras almas afogadas” se tornem as protagonistas do próximo escândalo que fará nossa alegria. Adoramos ver o circo pegar fogo, até que alguém que amamos vai para a fogueira. Só neste momento é que nos damos conta da nossa condição de assassinos, que não arrancam sangue com armas de fogo nem com facas, e sim com palavras. Deboches e piadinhas de mau gosto também são um modo de matar.

Me chamem de lunático, porém, para mim, quem matou Amy não foram somente as drogas nem apenas as biritas. Fomos também nós e nossa mania de continuar batendo palma para os palhaços continuarem nos divertindo, sem nos dar conta dos riscos que isso envolve. Agora, fingindo que não é nada com a gente e dando um descanso à consciência, deixemos que os abutres de plantão façam a festa sobre o cadáver de Winehouse. Isso só prova que há muitos corações por aí fedendo à carniça.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Aos desconhecidos

Hoje, Dia do Amigo, tem uma ideia que não larga do meu pé. Ou melhor, da minha cabeça. Mais do que sentir vontade de homenagear os amigos que tenho, que me ajudam a remar o barco e são pedaços do céu, meu pensamento está viajando em busca daqueles que nunca encontrei, dos navegantes que ainda não desembarcaram no meu cais, ou de quem um dia nadou pelas minhas águas, mas naufragou cedo demais, antes mesmo que desse de tempo de eu salvá-lo.

Penso nas pessoas que vejo apenas nos jornais ou nas capas de revistas, naquelas de que não sei nada além do nome ou que vivem nos apartamentos pela cidade, e que nem sequer sabem da minha existência. O que será que achariam do meu jeito? E eu, o que pensaria da forma como costumam sorrir? Será que nos daríamos bem, que iriam querer fazer festa surpresa para mim no meu aniversário? Ou nossas estrelas não combinariam, fazendo com que nosso encontro provocasse o estouro de um meteoro?

Só o que sei é que, agora, sinto falta desses amigos: dos que nunca foram nem serão meus. Dos que se apagaram e dos que nem chegaram a se acender. Dos que se foram e dos que partiram sem se despedir. Dos que ficaram pra trás e dos que nunca encontrei pela frente. Dos que eu não soube valorizar e dos que não me reconheceram ali. Sinto falta dos amigos que não atravessaram a ponte, que ficaram do lado de lá e eu só consigo acompanhar de longe. Meu coração lamenta a ausência dos amigos que não vieram, dos que nunca bateram à minha porta, dos que fingiram não estar em casa quando eu toquei a campainha da vida deles. Nem pela janela me deixaram entrar.

Choro a dor de reconhecer o quanto de gente nunca poderei amar, o número de páginas em que jamais escreverei meus sentimentos de eternidade. Queria do meu lado, além dos meus heróis, também os amigos frágeis e rachados, que me dessem trabalho para ajudá-los a colar suas partes, que tivessem paciência para me ajudar a remontar as minhas. Queria ouvir as vozes de novos amigos, saber qual a música de que mais gostam, ser lembrado no meio de uma tempestade, ter quem me ouça quando a chuva no telhado abafar o som silencioso do meu grito.

Hoje, deixo minha homenagem àqueles amigos que não me conhecem, dos que não sei onde moram nem eles têm noção da minha localização, de em que rua de mim estou. Deixo a saudade de quem só vejo passar voando, dentro dos carros, sempre atrasado para algum compromisso, apressado demais para perceber a existência dos que caminham pela calçada. Deixo um espaço vazio, além dos muitos que já estão muito bem ocupados, obrigado. Deixo meu endereço: moro bem ali, perto da estação onde você não desceu, ao lado da praça que você não visitou, nas linhas da poesia que você nunca leu, largado na prateleira que você deixou encher de poeira, dentro de um corpo que, antes de parar de respirar, espera conhecê-lo.

Finalmente, acima de tudo e saindo fumaça da chaminé, me deixo como ponto de referência. Para me encontrar, vire a esquina da avenida em que ainda sobrevivem os poucos sonhadores, os que andam como andarilhos, porque são considerados lunáticos, recitando baboseiras de Clarice e trechos estapafúrdios de Saramago. Envolto em cobertores de palavras e aquecido pelos versos de Chico, eu estarei te esperando.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Depressa demais

Embora eu não seja muito fã daqueles que usam Deus como um caminho para o estrelato e para conseguir alguns milhões à custa da fé do povo, confesso que o padre Fábio de Melo entrou para a lista dos pensadores que admiro. O discurso adotado pelo religioso é encantador: ele nos apresenta a um deus mais possível, digamos. O criador que o líder católico nos revela é menos rancoroso e mais parecido com as mães, não necessita de louvores 24 horas por dia para ser rei nem carece de tronos para governar quem quer que seja; está acessível na riqueza e no coração de quem ama, ao alcance de um abraço, sem burocracias ou honras demais para nos receber em seu colo.

Além disso, o lado escritor de Fábio de Melo também me fez admirá-lo. Li “Mulheres de aço e de flores” e “Cartas entre amigos”, dois livros que o padre escreveu, e gostei muito do que encontrei nas obras. Entre tantas, uma frase que desacelerou meu coração foi: “Eu queria te agradecer pelas inúmeras vezes que você me enxergou melhor do que sou. Pela sua capacidade de me olhar devagar, já que nessa vida muita gente já me olhou depressa demais”.

Bingo! O padre tocou em um ponto que a maioria das pessoas tem sido negligente: a pressa. Temos vivido apressados demais, sem tempo nem para resolver nossos assuntos pessoais, que dirá para olhar, com calma, para os lados, para quem nos cerca. A mulher é casada há dez anos, mas nunca reparou que, além da pinta no canto da boca, o marido também outras marcas que mancham seu sorriso. Dois jovens convivem num ambiente de trabalho e, embora se vejam todos os dias, nunca se repararam, nem sequer sabem que cor tem o olhar azul de quem parecia ter os olhos escuros. Olhamos depressa demais para os outros, nem sequer olhamos para nós mesmos.

Buscamos enriquecer a todo custo, deixamos de sonhar e só nos concentramos em comprar uma casa na praia, só pensamos em passar no vestibular, esquecemos de ir à conversa de pais na escola dos filhos para chegar a tempo numa reunião de negócios, abandonamos a poesia para conseguir ir à aula de inglês, deixamos de lado os amigos para não faltar à academia... Atropelados pelo tempo, encaramos as pessoas como se fossem páginas de jornal: basta uma olhadinha rápida para captar o “resumo da ópera” e olhe lá. O sorriso, as virtudes, os abraços, uma conversa pausada, enfim, tudo passa depressa demais diante de nossas janelas, como se viajássemos a 120 km/h pela vida e as paisagens ficassem embaçadas no exato momento em que passamos por elas.

Olhar devagar é perceber que sua filha pode até não cantar bem, mas daria uma ótima arquiteta. Olhar devagar é ter tempo para um amigo, que não vai te pagar por aquela conversa, no entanto, vai enriquecê-lo com jóias de verdade. Olhar devagar é insistir no sucesso daqueles que já desistiram, é se encarar no espelho e querer saber, sem pressa, quem ele está mostrando. Olhar devagar é notar o choro de quem parece sorrir, é observar sinais de temporal no horizonte daqueles que parecem fazer sol, é dar um stop e, frente à paisagem, contemplá-la, lentamente, como se os ponteiros do relógio de dentro tivessem parado e o tempo fosse nosso companheiro, e não um inimigo, como insistimos em vê-lo.

Mas, nem sabemos o que é stop. Vivemos olhando depressa demais, amando depressa demais, comendo depressa demais, esquecendo depressa demais, rejuvenescendo depressa demais, envelhecendo depressa demais, correndo depressa demais. Então, a vida passa num piscar de olhos, e, mesmo respirando, acabamos morrendo. Depressa demais.