terça-feira, 23 de agosto de 2011

Velha roupa colorida

É provável que os matusaléns de plantão e os amantes de uma boa safra da MPB se lembrem do título desta crônica, “Velha roupa colorida”. Trata-se do nome escolhido por ninguém menos que Belchior para resumir uma de suas mais célebres composições. A letra desta música exala poesia, entre versos que, em minha opinião, reivindicam a volta de atitudes que nos façam jovens, independente da idade que temos. “E o que há algum tempo era jovem novo/ Hoje é antigo, e precisamos todos rejuvenescer/ (...) No presente a mente, o corpo é diferente/ E o passado é uma roupa que não nos serve mais”.

Disso, presumo: precisamos urgentemente tirar nossa velha roupa colorida do armário. Creio que, ainda na longínqua década de 80, Belchior já estivesse criticando essa (falsa) atmosfera de modernidade na qual vivemos, onde pretendemos retardar o envelhecimento, mesmo passando dezenas de horas por mês em frente ao computador. O compositor parecia ter a visão do que seria o futuro que, hoje, anos depois, tornou-se realidade. Cá estamos nós, com nossas velhas roupas coloridas jogadas no armário, com nossos sonhos de ser jovens mofando dentro das gavetas, acreditando que a tecnologia vá, enfim, nos salvar do tempo.

Enquanto nos preocupamos com isso, os dias correm e, quando nos damos conta, já era: “o passado é uma roupa que não nos serve mais”. Então, ao invés de procurarmos nos colorir com outras esperanças, insistimos em ir às ruas trajando atitudes maltrapilhas, que nos vestem como empresários mal amados. Saímos passeando pelo shopping, exalando um ar de gravata-borboleta, que nos embeleza por fora, mas nos sufoca. Vamos às baladas usando os vestidos mais caros, que nos emprestam a pose de quem só sabe viver encima do salto, de quem não é capaz de suportar o impacto de pousar os pés descalços sobre o chão.

A velha roupa colorida de Belchior está largada por aí, jogada num canto qualquer, prestes a virar pano de chão. É a poesia, o gesto descompromissado, o abraço que não pode ser comprado, o sorriso que não se vende. São atitudes que funcionam como Renew para o coração: evitam o aparecimento de rugas. São gestos que já saíram de moda, roupas que só foram usadas por quem realmente soube se aproveitar delas, mas que não perderam o brilho nem desbotaram, afinal, o que é colorido de verdade não se deixa vencer pelo preto e branco; o que já foi arco-íris nunca perderá as sete cores.

Pelas praças, ninguém se reconhece mais, e não para de crescer o número de pessoas que só querem ser abraçadas pela webcam. Salas virtuais de bate papo estão mais lotadas do que saraus, livros viraram tablets, poetas transformaram-se em chatos de galochas, crianças ganham um celular antes mesmo de aprenderem a se comunicar pelos olhos. O Twitter está aí, multidões me seguem, mas não sabem quem sou nem para onde sou capaz de levá-las. Em pleno florescer das novidades, falar em velha roupa colorida lhe parece absurdo? Pois é por isso que precisamos todos rejuvenescer.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Dia de gente

“Hojeeeee! Hoje é meu dia de gente... Hojeeeee! É proibido dormir...” Quando ela acordou, Paula Toller estava cantando os versos desta música. O rádio sobre a penteadeira dormira ligado em sua estação FM favorita, e era de lá que saía o doce berro da vocalista do Kid Abelha. Sentiu-se convidada pela melodia, percebeu seus olhos dançando no ritmo da levada e, num relance, decidiu: “Hoje também será o meu dia de gente”. Olhou no relógio e notou que ainda não passava das sete da manhã. Mesmo assim, saltou, com toda empolgação, da cama e foi bem depressa para o banheiro. “Como é bom sentir-se gente de vez em quando”, sussurrou, encarando-se no espelho.

Partiu pra cozinha e abriu a janela com um sorriso mais iluminado do que o sol, abriu-se para o dia como se seus cômodos estivessem desarejados há muito tempo, como se seu ânimo estivesse precisando urgentemente ser aquecido. Recepcionou as primeiras horas da manhã como se fossem as últimas, valorizando cada segundo mais do que usualmente valoriza o dinheiro. “Afinal, é isso que gente de verdade faz: cuida do tempo tendo consciência do ouro que tem em mãos, não desperdiça segundos fazendo questão de poucos centavos, não troca o valor de suas preciosas horas nem pela maior cifra do mundo. Gente que ainda não virou um caixa eletrônico ambulante, que não transformou suas palavras em cédulas, sabe que falta faz um dia”, imaginou.

Decidiu que não ia tomar café. Queria se alimentar de algo que não pudesse ser mastigado, e sim sorvido, como o ar. Resolveu pegar um livro e devorou poesias, encontrando proteínas e sais minerais em cada um dos versos que lia. “Era desses nutrientes que minha alma estava precisando”, descobriu, enquanto saboreava uma farta porção de Clarice. “No meu dia de gente, estou percebendo o quanto minha alma estava desnutrida. A partir de agora, quero sempre complementar minha nutrição com boas doses de beleza. Para isso, vou procurar passar mais tempo com os amigos e menos no Facebook, olhá-los nos olhos, quero me nutrir ajudando-os a resolver suas inseguranças e comemorando os momentos em que forem fortes – e fracos. Reciclarei o meu lixo percebendo o que há de belo no outro, o jeito como sorri, o modo como afasta a lágrima que acabou de cair”, prometeu.

Antes de almoçar, foi até a pracinha da esquina, decidida a perceber coisas que só gente de verdade tem a capacidade de enxergar. Viu a forma esplêndida com que o vento esparramava as folhas, encontrou duas amigas se abraçando e, ao se deparar com um casal de velhinhos caminhando, descobriu o quanto dura a eternidade. “Isso sim é ser pra sempre: quando o amor não vira ruga dentro de nós e a fraqueza dos ossos nos debilitam, mas nosso coração continua forte, apoiado num sorriso que, vá lá, já está de denturas, no entanto, continua tão belo quanto foi um dia”, constatou.

Na paisagem, alcançou um andarilho, que tinha o hábito de passar as noites dormindo num caixote. A gente de hoje não tem tempo para notar meros detalhes como esse, está sempre tão atrasada para algum compromisso que pisoteia os que vivem pelas ruas, como se nem sequer fossem... gente.

Foi até o homem, que diziam por aí ser jovem, embora a juventude já estivesse afastada há tempos de suas atitudes, de seus sentimentos. Cogitou dar uma esmola, entretanto, hesitou. “Gente que é gente não faz só isso: também doa um pouco de atenção, também se entrega como dízimo. Por isso, hoje não compartilharei apenas umas moedinhas que estavam jogadas no fundo da carteira; algo tão simples todo mundo faz. Vou fazer diferente: ao invés de abrir as mãos somente para dar o dinheiro, as abrirei também para um carinho e para um afago. Ao invés de abrir a boca para criticá-lo e dizer que fede à pinga, tentarei abri-la para dizer ao mendigo algo que preste, que valha até mais do que uns centavos. Hoje, eu serei a esmola”, desafiou-se.

E, assim, ela passou o dia: fazendo gestos que são exclusivos de gente genuína, e não dessas que falam de Deus nas igrejas, mas rejeitam homossexuais e apóiam a matança de prostitutas; dizendo coisas que só gente com coração tem coragem de dizer, e não espalhando boatos e usando a língua para ferir o vizinho; inundada por sensações que apenas gente de carne e coração consegue, e não banalizando os sentimentos, achando que quem chora está mexicanizando a cena. Quando a noite chegou, sentiu-se satisfeita por ter conseguido algo tão difícil nos dias de hoje: ser, simplesmente, humana. Poder dramatizar. Contemplar o que está diante da janela. Ao apagar a luz e se deitar, sonhou: “quem me dera que eu conseguisse – e que me deixassem – ser gente todos os dias”.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Bala perdida

Sempre tive noção de que estamos, hoje em dia, cada vez mais vulneráveis ao que os outros dizem. Porém, só recentemente é que descobri – e senti na pele – o quanto. Fui vítima de uma fofoca, de uma flecha que dispararam contra mim e que me atingiu em cheio. O alvo foi certeiro: uma relação profissional que eu começava e que, de repente, foi manchada pelo veneno de alguém, que, muito provavelmente, jamais saberei o nome. Foram apenas comentários, mas, sem dúvidas, causaram estragos como se fossem bombas. Uma Hiroshima inteira de amizade foi pelos ares em poucos segundos.

Com isso, cheguei à conclusão de que quase todos nós, em algum momento de nossas vidas, já fomos atingidos por palavras que, disparadas ao relento, nos acertaram quando menos esperávamos. Não fui o primeiro e com certeza não serei o último. Me arrisco a dizer que se eu fizer uma pesquisa na esquina será impossível encontrar uma pessoa que nunca tenha levado este tiro, nem que seja de raspão.

Talvez algumas tenham sido atingidas apenas de leve, ficaram machucadas, mas não chegaram a perder um braço de confiança ou algo pior. No entanto, outras foram metralhadas, estavam no meio do tiroteio de comentários maldosos e nem sabiam, eram a ‘capa’ do jornal do bairro e nem imaginavam. Essas, perderam bem mais do que uma companhia para ir à festa ou algo menor; viram seus sonhos sofrerem com paradas cardíacas, sua reputação ir parar num quarto de CTI, sua dignidade respirar através de aparelhos. Há, ainda, aquelas que foram vítimas fatais: perfuradas pela língua alheia, testemunharam sua alegria sangrar até o fim.

“Onde há fumaça há fogo, acreditam todos, o que transforma toda fofoca numa verdade em potencial. Não há fofoca que compense. Se for mesmo verdade, é uma bala perdida. Se for mentira, é um tiro pelas costas”. Neste trecho de uma crônica de Martha Medeiros, ela está coberta de razão. O cara é casado e, depois do expediente, para num restaurante para dar força à amiga do trabalho, que está em frangalhos porque se separou do marido. Em instantes, passa a dona Clotilde, vizinha do homem, e avista a cena. Pronto! Em instantes, o gesto de amizade, que não tinha nenhuma malícia, transforma-se em motivo de fofocas, que se espalham como rastejo de pólvora, e, horas depois... Bang, bang, bang! O rapaz foi atingido e o casamento dele sofre sérias perfurações. E o pior é que nem sequer podemos prever de onde virão os tiros.

E, assim, vamos vivendo, na iminência de, a qualquer momento, nos surpreendermos com uma bala perdida, com algo que inventaram sobre nós e está prestes a nos ferir, com um comentário falso que chegou aos ouvidos do nosso chefe e que nos custará o emprego, com o silêncio dos tiros que, disparados ao pé do ouvido de nossos amigos, farão com que a confiança que eles têm em nós se machuque. São tiroteios aos quais sobrevivemos – ou não – todos os dias, pequenas violências que nos acertam no momento em que menos esperamos. Quando estamos distraídos e nos sentindo protegidos por nossos coletes à prova de fofoca, uma bala perdida surge do nada e... Bang! O tiro nos pega pelas costas.