sábado, 31 de outubro de 2009

A Partilha

Há alguns dias, assisti a uma das mais valiosas pérolas do cinema nacional. “A Partilha”, filme de Daniel Filho baseado na peça de Miguel Falabella, conta a história de quatro irmãs, maravilhosamente interpretadas pelas atrizes Andréa Beltrão, Paloma Duarte, Glória Pires e Lília Cabral, que após a morte de sua mãe precisam “partilhar” um apartamento deixado como herança para elas pela matriarca.

O DVD do longa foi lançado em 2001, mas esta é uma daquelas tramas que são eternas pela forma como se desenham na tela: parecem nos transportar para dentro do enredo e, quando notamos, já estamos tomados pela emoção das personagens. Muito mais do que a partilha de um imóvel, o filme traz à tona a trajetória de cada uma daquelas irmãs que, sem dúvidas, tinham muito mais a partilhar do que apenas um apartamento velho.

Em um dado momento da história, Selma, irmã interpretada por Glória Pires, trava uma árdua conversa a cerca do futuro daquela família com Maria Lúcia e Regina, respectivamente encarnadas por Lília Cabral e Andréa Beltrão. Em meio aquele momento de revelações e conflitos, Selma dispara: “O livro das nossas vidas tem vários capítulos em comum”.
Quando ouvi isso, não me restaram mais dúvidas quanto a verdadeira partilha que aquele filme abordava: a partilha de nós mesmos.

Desde muito cedo somos ensinados que partilhar o lanche com os amiguinhos na escola é importante para que nosso convívio social se torne mais fluente e agradável. Não sei onde isso se perdeu, mas sinto que as pessoas vem deixando cair pelo caminho o libertador hábito de partilhar as páginas de suas vidas com os amigos, permitindo assim que outros personagens surjam e dêem adeus ao longo da trama de suas próprias biografias.

Deixar de partilhar a vida também é uma pequena morte.

Partilhar um livro bacana que leu na semana passada, um lugar interessante que visitou no último feriado, uma praia deserta que descobriu por acaso, uma praça escondida importante para nós. Partilhar conselhos, crises, alegrias, emoções, encontros e despedidas. Partilhar o desejo de seguir em frente, o medo que tudo isso dá, o desespero pelos que negam a si próprios, a emoção de poder contar contigo.

Partilhar segredos silenciosos e verdades escandalosas. Partilhar o que ninguém vê, mas é tão precioso. Partilhar o pouco que temos guardado, mas que, somado a zero, torna-se vazio.
Voltando ao filme, quando as irmãs acabam de vender o apartamento, Regina conclui a cena, dizendo: “Agora é que começa a verdadeira partilha”.

A verdadeira partilha de nossos dias acontece a todo momento. É preciso que estejamos atentos para que nosso egoísmo não nos tape os olhos. Deixar de partilhar o valioso tesouro que trazemos guardado dentro é impedir que tanta riqueza faça toda diferença fora.

domingo, 25 de outubro de 2009

Quando eu choro

Não é segredo pra ninguém a admiração que tenho por toda obra literária da escritora e poetiza gaúcha Martha Medeiros. Recentemente, li com entusiasmo “Selma e Sinatra”, livro fantástico em que a autora narra o encontro entre duas mulheres: Guta, jornalista frustrada em busca do sucesso, e Selma, que na trama é uma das maiores cantoras da Música Popular Brasileira.

Entre inúmeros momentos eletrizantes e frases marcantes, o trecho de um diálogo entre essas duas mulheres – que de tão reais parecem conversar conosco – me chamou a atenção. Em sua tentativa de conhecer Selma além da casca dura, Guta lhe pergunta algo curioso: “Quando você chora?”.

Mais a frente, a cantora começa com a seguinte frase um discurso emocionante: “Você queria saber quando eu choro? Choro quando estou sozinha, quando ninguém está vendo”. A declaração de Selma para Guta, gravada em uma secretária eletrônica, é uma prova evidente da humanidade de uma pessoa que até então parecia intocável. São os nervos expostos de um ser humano que costumava se travestir de super herói.

Quando li a pergunta de Guta, pensei: “E eu, quando choro?”.

Choro quando cai minha chave geral e minha energia fica comprometida e, sendo assim, tento irradiar luz e não consigo. Choro quando alguns fios desencapados dentro se chocam e produzem uma explosão que se reflete fora. Também choro nos momentos em que me sinto sozinho, no entanto, isto geralmente acontece quando estou muito acompanhado. Choro quando meus olhos cegam, mas deveriam urgentemente enxergar.

Minhas lágrimas molham o chão de meus cômodos interiores quando troco pontuações: onde deveria perguntar, exclamo; onde deveria pausar, sigo. Choro quando pontos finais são colocados em situações em que eu gostaria muito de por vírgulas, quando os travessões escapolem de mim e não sou capaz de dizer o essencial que, guardado, mofa. Choro quando perco a agulha que utilizo para costurar o que em mim fica solto; e não se enquadra. Choro quando verbalizo onde o melhor seria calar.

Choro nos dias em que não consigo me lembrar da cor do meu sorriso, de saudade de quem se foi, sentindo falta de quem está longe. Choro quando os dias não têm mais cor, pois eu mesmo deixei de colori-los com os pincéis que tenho. Choro quando tenho medo de mim mesmo, quando não consigo achar a saída e fico perdido dentro. Choro quando desisto, mas o melhor seria seguir em frente.

Meu choro é assim: meio dama, meio vagabundo; meio fantasia, meio real; um tanto quanto autêntico, mas também fajuto. Minhas lágrimas nem sempre são visíveis a olho nu; em muitas ocasiões é preciso um pouco mais de sensibilidade para percebê-las. Choro quando sou rendido pelas armas que eu mesmo guardei.

Conjugar o verbo chorar em diversas flexões e tempos não me preocupa. Tenho medo é de secar, de não ver mais brotar de minhas terras secas a renovação que tanto busco. Ter vergonha de chorar é o mesmo que envergonhar-se de nossa humanidade, que de tanto ser escondida, morre sufocada dentro de nós.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Boa sorte

É de praxe. O filho sai para prestar o vestibular e a mãe, após abraçá-lo, diz “boa sorte, menino”. O amigo vai tentar a vida em uma outra cidade e o outro, com voz abafada pelo choro, sussura “boa sorte, brother”. A namorada consegue um novo emprego e o parceiro lhe diz “boa sorte, amor”.

Desde quando nos entendemos por gente – se é que nos entendemos – essa expressão está presente no meio de nós. A sorte é caçada por todos como um trunfo a ser guardado na manga, como uma companhia indispensável nas situações mais decisivas da vida.

Queremos sorte em uma entrevista de trabalho, durante o encontro com um novo pretendente a ocupar nosso coração, ao apostar na loteria. Sorte para encontrar uma nota de R$ 50 jogada na calçada, sorte para não perder dinheiro. Sorte no momento de decidir para qual lugar viajar, para optar por qual caminho seguir. E, é claro, sorte no amor. Essa, sem dúvidas, a mais almejada da categoria. Alguém aí não quer tê-la?

Buscamos a sorte, inclusive, para torná-la um álibi de nossos erros. É mais fácil dizer que foi falta de sorte do que reconhecer nossa própria culpa diante de um fracasso. Não é por falta de sorte que nos esquecemos de nós mesmos.

Há algum tempo, namorei uma pessoa que tinha o costume humano de me desejar boa sorte nos momentos determinantes da vida. Quando fui prestar o vestibular, ela me disse em alto e bom som: “Boa sorte, querido”. Em outras situações, quando eu ouvia de sua boca essa expressão, pensava muitas coisas.

“Sim, amor, quero ter sorte para conseguir o impossível para nós dois, para impedir que o intangível atravanque nossos sonhos. Oh, Deus, conceda-me sorte ao atravessar a rua, para que nenhum mal me acometa e eu consiga voltar inteiro – alma e corpo – para os braços de quem amo. Desejo sorte para que meus olhos possam pousar novamente sobre a pessoa que tanto eles gostam de observar, sorte para que o brilho retido na pupila não se perca pela falta dela. Sim, sorte. Para que a gente não se perca nunca, para que a partida não termine enquanto tivermos fôlego para jogar. Sorte para não disputarmos com nosso próprio ego; sorte para não pressionar o botão que interrompe nossa conexão consigo próprios”.

Quando a sorte, que prefiro chamar de amor, afastou-se de nós, nosso relacionamento cruzou a linha de chegada. Antes de desligar o telefone, pude ouvi-lo me dizer, ainda que engasgado: “Boa sorte, querido”. Acho que tive sorte. Só comecei a chorar quando cheguei em casa.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Perigo na estrada

O número de acidentes na estrada da vida tem sido cada vez maior. Corações acelerados derrapam na curva, sentimentos sem freio causam estragos e a colisão entre a sanidade e o desespero culmina em perda total dos relacionamentos. É uma pena que tantos motoristas imprudentes estejam no volante, sem se preocuparem em dirigir corretamente suas vidas. Esbaforidos, vivem perigosamente para desviar do risco que é encarar os próprios olhos. Por tanto perigo a troco de nada, perde-se o rumo de casa, esquece-se da estrada pra dentro.

Tenho medo do desespero que ronda a mente dos condutores. Receio que, na tentativa de fugirem de algo, acabem escapulindo de si mesmos. Não é necessário conduzir os dias em desespero. De vez em quando, é preciso parar um pouco, puxar o freio de mão e reavaliar se as rodovidas que temos escolhido seguir são as mais adequadas para se chegar a um destino feliz. Talvez com menos barulho seja possível escutar a própria voz, aquela que a gente não ouve há muito tempo.

O mais importante não é a velocidade com a qual conduzimos a vida; o que vale é a direção, o caminho que escolhemos para percorrer. Não adianta correr pra lugar nenhum. Sozinho, talvez seja possível observar melhor os afetos que nos faltam e os excessos que nos afetam negativamente. Aliás, quase sempre são os excessos que nos atropelam. Clarice Lispector, uma das jóias mais valiosas da Literatura Brasileira, escreveu: “Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e o seu desespero. E agora só queria ter o que eu tivesse sido e não fui”.

Com o carro transitando sempre a 120 km/h, inúmeros viajantes que gostariam muito de seguir viagem conosco ficam pelo caminho. Algumas pessoas esquecidas na estrada poderiam nos engrandecer com seu sorriso, mas nossa ânsia de chegar depressa a lugar nenhum nos impede de enxergar quem está fora e quer entrar.

As paisagens distorsem-se quando o carro se mantém constantemente em alta velocidade. Amores que se tornariam importantes minguam diante da janela. A visão de quem só vive correndo não alcança os instantes sublimes que estão escondidos nos pequenos gestos cotidianos: abraçar para acolher, beijar para curar, olhar nos olhos para conhecer, perdoar para salvar, amar para viver. A flexão e relação desses verbos ficam perdidas nos ponteiros do velocímetro.

O perigo na estrada é constante. Estamos na contramão de nossos sonhos, fazendo a curva onde deveríamos seguir em frente, retornando quando nosso coração pede para ir adiante. Nossas placas de sinalização estão invertidas. Há sinais de “estacionamento proibido” em muitos corações que precisam ser ocupados. O “não vire a esquerda” está constantemente posicionado dentro. É preciso reavaliar nossas leis de trânsito, arejar o código adotado para transitar pelas estradas. No semáforo da vida, vamos ligar o sinal vermelho para o que nos impede de ser feliz, manter o amarelo diante de cruzamentos perigosos e dar o verde para nós mesmos.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Algo mais

A mulher, elegante e bem vestida, sai sozinha de casa para ir jantar em um restaurante cinco estrelas. Dizem que a solidão só é bem vinda quando adotada por opção; não era o caso dela. Após escolher uma mesa no fundo do local, onde pudesse disfarçar - além da falta de um amigo ou namorado - a ausência de brilho no olhar, sentou-se. O garçon se aproximou da jovem rica mais pobre que já conhecera, anotou seu pedido e lhe perguntou:
“Algo mais, senhora?”.

“Sim, por favor, inclua no meu pedido algumas doses de bom humor. Já esqueci a cor do meu sorriso. Não vi no cardápio, mas se pudesse providenciar uma generosa refeição de amor próprio, ficaria muito grata. Minha dieta cotidiana consiste em gastar as calorias do corpo. Note que não estou gorda. Mentira. Minhas gorduras estão alojadas na alma e, se você conseguisse me enxergar por dentro, perceberia que preciso rapidamente fazer um regime. Estou entupida do que é dos outros: gestos, ideias, a velha mania de querer agradar... Não há mais espaço em minha vida para eu mesma”.

Ela pensou, mas não disse.

O rapaz vai ao motel com a namorada. Formam um casal há um ano, mas já faz algum tempo que a relação está vazia, sendo povoada apenas pelo sexo e pelo prazer, que servem como soluções temporárias para problemas que se transformaram em permanentes. Quando terminam de transar, a garota pergunta: “Algo mais, amor?”.

“Queria que fôssemos capazes de trocar mais que carícias e beijos. Trocar um conselho, uma confissão, uma cena de rua que nos chamou a atenção, uma sugestão de um livro interessante. Queria que fôssemos corajosos o suficiente para liberar mais que a libido. Liberar um ao outro da imposição da presença, da obrigação de ser o melhor ‘qualquer coisa’, da sensação que essa solidão acompanhada nos provoca. Queria que fôssemos sensíveis o bastante para sentir outro tipo de prazer. O prazer de assistir um bom filme, de viajar juntos através de uma leitura agradável, de rir do nosso próprio ridículo quando o caos da cidade parece querer nos abduzir. Queria que nossa relação voltasse a ser ocupada por quem realmente importa: eu e você”.

Ele ficou em silêncio, mas gritou.

A cozinheira quer algo mais que um bom salário, a esposa necessita de algo mais que um anel de brilhantes, o namorado deseja algo mais que um terno, a mãe precisa de algo mais que um liquidificador, o amigo anseia algo mais que uma camisa, a menina sonha com algo mais que uma transa.

Um beijo de boa noite escreve algo belo em um dia que passaria em branco. Um pedaço de atenção completa um espaço vazio dentro de nós. Estar embalado no abraço de quem se ama não tem preço. Um instante sublime que se mantém alheio ao tempo ameniza nossa saudade. O algo mais de que precisamos está muito perto. Basta um pouco de doçura para percebê-lo.