segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Eu aceito

Estava circulando com uma amiga pelas ruas do bairro onde moro, quando notei um detalhe curioso. Em um raio de menos de um quilômetro, existem quatro igrejas com denominações, crenças e ideologias diferentes. Apesar de não ser a favor, minha opinião sobre este assunto não vem ao caso. Não agora. O que me chamou atenção em uma delas foi o momento em que uma mulher estava, pelo menos da boca pra fora, “aceitando Jesus”. Eu pensar que conversão não é um processo instantâneo, como Nescau, também não está em pauta. Vou é meter meu bedelho na azeitona dessa empada e dizer o que está implícito nesta afirmação.

“Eu aceito Jesus e aceito também o outro. Aceito que as pessoas que amo, embora também sintam o mesmo por mim, me magoarão de vez em quando e devo perdoá-las por isso. Aceito Jesus e o pedido de desculpas daquele amigo que me machucou com uma palavra escapolida durante a viagem que fizemos juntos no último feriado. Ah, aceito ajudar aquela senhora a atravessar a rua, topo contribuir com o projeto de vizinhos que professam uma fé que destoa da minha e, tô dentro: vou aceitar que a minha filha ame diferente. Aceito Jesus e vou considerar a todos como irmãos, sejam eles católicos, espíritas ou até mesmo ateus. Aceito Jesus e principalmente aqueles que não crêem na vida”.

“Eu aceito Jesus, mas devo aceitar também que meus pais envelheceram e não têm mais aquele pique de 15 anos atrás, devo aceitar que a mente deles vai ratear de vez em quando e que, vez por outra, serão repetitivos, como eu era quando tinha três ou quatro aninhos. Eu aceito Jesus e estou pensando seriamente em procurar o meu irmão. Faz mais de cinco anos que não o vejo, que não tenho nenhuma notícia dele. Rompemos nossa amizade quando brigamos por uma moça, porém, tenho certeza que nossos verdadeiros laços nunca ruirão. Aceito Jesus e estou aprendendo a aceitar meus amigos, que vêm com defeitos, imperfeições, opiniões diferentes, mas que também trazem um leque de novas possibilidades e caminhos repletos de felicidade. Basta que eu saiba enxergá-los”.

“Eu aceito Jesus, mas não tenho o direito de dizer que fulana vai para o inferno porque traiu o marido, que beltrano vai apodrecer no enxofre porque é homossexual, que sicrana já está condenada porque não carrega a bíblia debaixo do braço. Aceito Jesus e vou julgar menos pelas aparências; aceito Jesus e prometo que vou me esforçar para não me envolver mais com drogas: nem as ilícitas nem as outras que encontramos pela vida, que a gente não fuma e não cheira, entretanto, se vicia e sente doer dentro. Sim, eu aceito Jesus, porém, sei que isso só será verdadeiro quando eu não aceitar as injustiças, quando ainda me indignar com a promiscuidade e com a maldade e quando, realmente, fizer algo que contribua com a mudança. Aceito Jesus, mas sei que isso depende de agir como ele agiria”.

Em tempos onde todos aceitam Jesus, mas não aceitam a si próprios, onde as igrejas estão cheias e os presídios também, onde os fiéis decoram as palavras da bíblia e se esquecem das leis de trânsito, onde as pessoas enchem a boca para desejar a paz de Cristo, mas calam quando chega a hora de dar um conselho a um amigo, só mesmo lembrando que Deus não está apenas no céu: está também no outro. E em nós...

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Tristeza respeitada

Se eu começasse a escrever aqui sobre como me sinto triste hoje ou dizesse que acordei indisposto por um motivo qualquer, o que você faria? Provavelmente, desviaria o olhar e procuraria uma coluna mais agradável, onde fosse possível encontrar palavras de alento e conforto, um incentivo a felicidade alheia. Por que é tão difícil respeitar e sentir a tristeza? Há dignidade maior do que viver esse sentimento tal como os outros, deixando que flua até a última gota? Não sei respeitar a alegria sem fazer o mesmo com a tristeza. Quando dói em mim, eu deixo.

Andava pensando em escrever sobre esse assunto, mas fiquei receoso quanto a reação dos leitores em relação ao tema, que pode parecer melancólico. Foi quando sintonizei em um domingo à noite a entrevista da fantástica Marília Gabriela com a sempre afinada e deslumbrante Vanessa da Mata. No bate papo, a cantora revelou que não consegue cantar somente a felicidade da vida, omitindo os dramas que também povoam o cotidiano das pessoas e fazem parte do dia a dia de todos. A artista é a autenticidade em pessoa! Assume os cabelos, a raiz, os sentimentos. Eu também. Quando sangra em mim, eu deixo.

A maioria das pessoas carrega nas costas a responsabilidade de ser feliz o tempo todo, de gargalhar o dia inteiro, de disfarçar que está péssima com o fim do relacionamento, de esconder que gostaria de dormir até o Natal chegar. E isso tudo por que? Porque quase ninguém respeita a tristeza de um amigo. Este é evitado e, quando acolhido, é recebido com o mesmo discurso de sempre: “Deixa essa tristeza de lado! Coloca um sorriso nesse rosto lindo”. E se ele não quiser sorrir agora? E se preferir ficar em casa, curtindo a fossa, deixando escorrer pelo rosto o que não cabe mais dentro? Merece ser demonizado por isso? Eu sou assim. Quando lateja em mim, eu deixo.

Benditos sejam aqueles que respeitam a tristeza alheia, que não obrigam um amigo a interpretar a felicidade para ser aceito, que compreendem a dor do namorado e aceitam a ausência, que sentem-se bem em acolher quem está mal. Benditos sejam todos que toleram as lágrimas de quem se ama, que sentam-se ao lado de um amigo no sofá e dizem tudo através do olhar. Concordo com um escritor não identificado, que filosofou: “Não sei como dói em você, mas por saber como dói a minha dor, imagino: de tão abstrata, incomoda fisicamente, de tão ignorada ela se humaniza. Do que eram laços, certezas, sobram apenas as mãos entrelaçadas, sem ter onde segurar”. Quando lacrimeja em mim, eu deixo.

Que fique claro que esta crônica não é um hino à tristeza. Eu sei que ela não faz bem à saúde, mas, como bem escreveu Martha Medeiros, “a introspecção é um recuo providencial, pois é quando silenciamos que melhor conversamos com nossos botões. E dessa conversa sai luz, lições, sinais, e a tristeza acaba saindo também, dando espaço para uma alegria nova e revitalizada. Triste é não sentir nada”. Fica, então, um pedido de amigo: respeitem a tristeza do outro. Mais ainda, respeitem a própria tristeza. Prefiro uma tristeza sincera e honesta a uma felicidade falsa e aparente. Triste mesmo é o vazio de dentro.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Devíamos contar

Existem dois ítens que não podem faltar no meu armário: livros e séries de TV. Coleciono inúmeros DVD’s de seriados premiados, como “The O.C” e “Grey’s Anatomy”, entretanto, desde que conheci “Desperate Housewifes”, passei a colecionar também, na memória, frases memoráveis e diálogos intrínsecos, que quase sempre me levam ao silêncio do recolhimento e da reflexão. Cansada da mesmice do seu dia a dia, Mary Alice decide tomar uma atitude radical e colocar um ponto final em sua rotina. Assim começa a série, com o suicídio da narradora, e a surpresa que sua atitude provoca nas amigas mais íntimas.

A partir daí, Mary Alice conta, de uma perspectiva bastante peculiar, a vida de suas grandes companheiras: Susan Mayer, uma ilustradora de livros infantis, divorciada, que cria a filha sozinha; Lynette Scavo, que trocou uma carreira de sucesso na publicidade para cuidar da família; Bree Van De Kamp, uma perfeccionista doentia, que está prestes a ter sua família contra si; e, por fim, Gabrielle Solis, uma ex-modelo sedutora que sempre consegue o que quer. Ontem, assistindo a um dos episódios da primeira temporada da série, um diálogo entre as personagens Lynette, Bree e Susan alojou-se em meu pensamento.

Na cena em questão, Lynette “surta” por não se considerar uma boa mãe e esposa, por sentir pesar-lhe uma culpa imaginária, por pensar ser a única impotente em meio a tantas guerreiras invencíveis. É neste momento de aparente fracasso da personagem que surgem Bree e Susan, que dizem à amiga que, no fundo, todas também passaram pelos mesmos medos e angústias que Lynette. Só o escuro do quarto as conhecia intimamente. Ao ouvir a revelação das companheiras, a angustiada exclama: “Vocês deviam ter me contato isso antes. Com certeza, teriam me ajudado”.

Embora de olhos secos, meu coração molhou diante da TV. Quantas coisas nós também deveríamos contar para libertar alguém de nosso silêncio? Devíamos contar aos nossos amigos o quanto são importantes para o nosso equilíbrio vital, o quanto são valiosos os conselhos, ainda que equivocados, e os abraços, ainda que sorrateiros. Devíamos contar para nossos companheiros o quanto é bom tê-los por perto, a tamanha felicidade que sentimos por poder segurar aquela mão debaixo do cobertor em uma noite fria de domingo. Devíamos contar o que matamos, mas ainda quer viver; o que negamos, mas devíamos afirmar.

Devíamos dizer mais vezes o quanto somos gratos por aquela pessoa ter aparecido na hora certa, por ter impedido que você fosse àquela festa, onde certamente veria os dois juntos. Devíamos contar que não sabemos tudo, que gostaríamos de aprender, que erramos, mas queremos acertar; que neglicenciamos, mas queremos libertar. Devíamos contar que mentimos quando verbalizamos demais, que pesa em nós não ter perdoado, que dói dentro o que fugiu de nosso controle fora. Devíamos contar para deixar livre o que em nós fica preso; e lateja. Devíamos falar para desentalar a garganta, para desengasgar o choro, para nos libertarmos de nossas amarras existenciais. Devíamos contar por contar, para deixar fluir, pro rio seguir o curso normal. Devíamos contar para libertar a nós mesmos.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

O que a saudade tem

Saudade. Alguém aí conhece outra palavra que expresse um sentimento com tanta força? Não é a primeira vez que falo sobre isso. Também não será a última. Saudade não nos acomete apenas uma vez e nem de tempos em tempos, como gripe, dor de dente ou resfriado. Saudade não é só o vazio, não é somente querer de volta. Saudade é saudade, e isso é tudo. Tudo que ficou marcado no pensamento, preso na garganta, entalado em um choro contido. Saudade não é sinônimo de distâncias físicas. Às vezes, está separada apenas por um cômodo, por um edredon. Saudade é a dor que mais dói, entretanto, o que ela tem?

Saudade tem o cheiro dele que ficou no seu lençol, tem o gosto dela que ficou nos seus lábios. Saudade tem aquele CD que vocês costumavam ouvir juntos, tem o filme que vai passar na TV e vocês assistiram agarradinhos no cinema. Saudade tem a mão solta, sem ter onde segurar. Saudade tem os dias que passam muito rápido, tem as horas que parecem rastejar. Saudade de anos atrás ou de ontem à noite. Saudade de quem se foi ou de quem está perto. Do que você está com saudade? Seja lá o que for, tenho certeza de que não importa onde está, pois mora dentro de você e isso basta. Saudade tem cenário, música, cor.

Saudade tem aquela novela que passa na sua cabeça quando você passa perto do local onde conheceu o seu melhor amigo e, assim, rapidamente, seus olhos se enchem de lágrimas. Saudade pode ser anônima ou atender pelo nome quando a gente chama. Quem você está chamando agora? Saudade tem pétalas de rosa espremidas dentro de um livro, tem sentimentos abalroados dentro de nós. Saudade tem porta retrato jogado no fundo da gaveta, tem roupas que a gente não usa mais e tem a revolta do que poderia ter sido e não foi. Saudade tem aquele cara que você conheceu na praia e nunca mais reviu.

Saudade tem a memória do que fomos na infância, o beijo da mãe antes de dormir, o abraço do pai quando chegava da escola, a cantiga que o irmão gostava de dançar. Saudade tem todos que não vivem mais ao nosso lado e a vontade de saber como estão, para onde foram, se continuam sorrindo, se ainda se sentem bem bailando, se permanecem preferindo verde, se cumpriram com a promessa de ir ao médico fazer o check-up. Saudade tem a dor de ficar sem notícias de quem se ama, tem o desespero de não saber se ele passou no vestibular, se ela usa o vestido lindo que você deu, se ele ainda tem o mesmo cheiro.

Saudade tem o que fica de nós pelo espaço que percorremos, as partes que cairam no caminho, o picolé de chocolate que você adorava chupar quando saía da missa. Saudade tem a visão de vocês dois juntos naquela viagem programada para o carnaval que não aconteceu, tem os risos que ficaram para nunca mais, tem o cabelo liso e loiro dele que você ama. Saudade tem o avental da sua mãe falecida pendurado na porta da cozinha, tem o canto desafinado dela que você adorava ouvir. Saudade tem a lembrança do ex-namorado que você não esquece. Saudade tem o invisível que ninguém vê e só a gente sente. Saudade tem as sensações e momentos guardados em um lugar intocável: dentro.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Ele é gay

“Onde há fumaça há fogo, acreditam todos, o que transforma toda fofoca numa verdade em potencial. Não há fofoca que compense. Se for mesmo verdade, é uma bala perdida. Se for mentira, é um tiro pelas costas”. É destas frases da magnifíca escritora gaúcha Martha Medeiros que essa crônica começa a nascer. O que abordarei a partir daqui? Falarei das mentiras que transformamos em verdades e esparramamos por aí, sem dó nem piedade de quem será alvo de nossas línguas afiadas demais com o que diz respeito ao vizinho e bondosas em excesso quando se trata de algo que acontece dentro da casa da gente. Escrevo, hoje, sobre o que neglicenciamos dentro de nós mesmos.

“Está vendo aquela moça atravessando a rua? Ela é prostituta”, diz uma senhora à uma amiga. Sim, é prostituta. Órfã de pai, mãe e de uma sociedade que a acolhesse, viu em seu próprio corpo um negócio e tanto. É prostituta, mas trabalha durante o dia como voluntária em uma creche do bairro. Prostituta e amiga para todas as hora; prostituta e educada. É prostituta, porém somente ela sabe o que sente ao deitar no travesseiro todas as noites, só ela sente a dor de suas lágrimas, que escorrem pela alma. Prostituta, sim, mas quer sair dessa. Tentou várias vezes, entretanto, o barulho das portas que se fecharam abafou a própria voz. É prostituta e boa gente. Prostituta e órfã de si mesma.

“Estou indignada com minha filha, amiga. O novo namorado dela é negro”, sussura a outra. Negro? Sim, mas trabalhador e honesto. Ele é negro e a respeita, negro e sonha em ter filhos com a mulher amada. Negro e fiel. Ele é negro, mas também criativo e inteligente. Domina os números como ninguém e quer subir na vida sem precisar desmerecer os colegas. Ele é negro e sincero com os seus sentimentos, verdadeiro consigo mesmo e com os outros. Negro e corre atrás do que é seu, sem desejar possuir o que não lhe pertence. Ele é negro e recita poemas maravilhosos, entretanto, alguém já parou para notar as cores vibrantes e coloridas de seus gestos? Negro e tem a alma serena e branca.

“Fiquei sabendo que o filho da Maria, que mora na esquina, é gay”. Sim, gay. Aliás, também fiquei sabendo que ele é gay, mas se levanta quando há idosos em pé e o ônibus está lotado. É gay e escritor; gay e um dos melhores alunos da universidade. Ele é gay, mas namora há dois anos o mesmo rapaz, o respeita e o quer bem. É gay e não cobiça a mulher do próximo; gay e não difama a vida alheia. Ele é gay, mas não se interessa pela rotina dos outros. Tem consciência de que há muito por fazer na própria casa, que há muito para arrumar no seu quintal. Sendo assim, é gay e opta por cuidar do próprio jardim, deixando que o vizinho cuide do dele. Ele é gay e ama os pais, respeitando-os. É gay e humano.

Fulano é ex-presidiário, mas saiu da prisão com bastante vontade de ser diferente, embora ninguém acredite em sua mudança. É ex-presidiário e não tem oportunidades para ser ele mesmo. Ciclana é divorciada, mas preferiu sair do casamento com alguns arranhões na reputação e a consciência limpa. A falta de capacidade de assinar nossa própria obra nos faz querer participar de uma biografia que não nos pertence. Nos falta criatividade e coragem para ousar em nossas próprias vidas e, sendo assim, nos resta a opção de ousar no terreno do outro. Eles são assim e nós, somos o que? Os outros são egoístas, mas e a gente, e a nossa própria culpa, e os medos que trazemos escondidos na mochila? O que mata a sociedade, aos poucos, é um de seus grandes vícios: a hipocrisia.