sábado, 21 de janeiro de 2012

Saudade de ontem


   Ontem, antes de a gula me assaltar e me roubar a leveza, eu era mais. Hoje, restou apenas a alma pesada, quilos a mais de tristeza. Sou hoje a fome de ser quem nunca fui, ou de resgatar o que fui e nunca soube. Sou os farelos que caem do pão no café da manhã, as cascas desnecessárias que são assopradas da mesa, espalhando-se pelo chão. Sou uma manteiga derretida, que não para sobre a colher; não consigo me conter no miolo. Escorro.
  Sou um calendário de dez anos atrás, folhinhas de datas que já mereceram destaque em vermelho, mas que, agora, não são mais do que dias ultrapassados. Hoje, me pareço com um produto fora do prazo de validade – acho que esqueceram de me retirar da prateleira. Sou o apetite voraz pelo que a balança jamais me permitiu alcançar, dois dígitos que, em meio a milhares de zero, não podem ser mensurados.
  Tudo que sou hoje é uma correspondência aberta que não chegou ao seu destinatário, uma carta emocionante demais que pararam de ler no segundo parágrafo. Sou a xícara de chá sozinha, sem café ou qualquer outro líquido que lhe dê algum sentido. Me adocei em excesso e, portanto, me encaixo nas medidas de poucos cardápios. Sou o líquido que entornou da chaleira e ficou esquecido sobre o fogão, o fervor de um leite que só se lamenta depois que já foi derramado.
  Perdi na queda de braço e a gula me acertou os ossos. Como consequência, minha força encheu-se de fragilidades, estilhando-se ao sacolejar de qualquer vento, esmorecendo antes mesmo do primeiro round. Tornei-me a lágrima que cai imperceptível no canto do olho, que escorre pelo cantinho da face e que, sem ter uma mão que a limpe, acaba perdendo o caminho de virar alegria. Tudo que sou hoje é o sorriso congelado na foto, a felicidade que foi emoldurada e não consegue se colocar em movimento.
  As portas do meu coração foram arrombadas e, no saqueamento, levaram as minhas jóias de motivação, deixando para trás apenas o ouro falso da baixa auto-estima. Mas, quando a saudade de ontem me permitir pensar no amanhã, quando enfim eu descobrir um modo de pagar o resgate do que perdi, quero muito voltar a ser tudo, quero muito voltar a ser eu.