sexta-feira, 20 de junho de 2014

A gente de tricot

Entrei no seu perfil para acompanhar as notícias mais recentes e (surpresa!!!) vi que a minha assinatura foi cancelada. Assim mesmo, sem cartas, sem bilhetes, sem telefones com atendentes de telemarketing fazendo cobranças, sem o coração deixando a chamada cair. Olhei na caixinha do correio para conferir, saber se, por ventura, não havia algum engano. Não havia. Não há. Só lembranças velhas, as nossas. De novo, só mesmo esta saudade, não de ler as notícias de hoje, mas de fazer parte daquelas de ontem.

Desfazer uma amizade não é apenas um click sobre o botão qualquer de uma maldita rede social. É se desfazer um pouco também de si mesmo, desfazer as malas, esquecer as viagens, desfazer os sonhos, e desfazer-se ao mesmo tempo da vida. Desfez-se a nossa história, desfiz-me eu um tanto mais, desfizeram-se um bocado os dias de sol. Só não se desfaz o arrependimento, a vontade de desfazer o que foi feito com a gente. Quantas desfeitas em nosso caminho!

Agora, mesmo desfeito o nosso elo, não saberei – e nem quero – me desfazer do que ficou. Botei tudo numa caixa, fotos e recordações, momentos e um cheiro de fim de tarde, o aroma de um café que tomamos juntos e a última lágrima minha que caiu no seu ombro. Guardei tudo, não ficou de fora sequer um alfinete, aliás, botei na caixa até a agulha com que tricotávamos nossas alegrias, a mesma que, hoje, foi utilizada para espetar o balão e estourá-lo. Puft! Caí do alto, com toda força, e me esborrachei no chão desfeito, desfez-se a sensação de estar nas alturas, desfizeram-se os nossos voos juntos, as nuvens… Desfiz-me eu, para sempre, um pouco mais.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

No ar

Eu tinha de 16 para 17 anos quando comecei a escrever crônicas e insistia para que meu amigo e irmão, o jornalista Frank Tavares, as publicasse no O BARRENSE. Relendo hoje, com um pouquinho mais de experiência, admito: os textos eram de dar dó. Mas era preciso que alguém acreditasse, conforme aconteceu, para que houvesse a oportunidade do aperfeiçoamento. Esse alguém para mim, além do Frank, tem nome e sobrenome: Norival Garcia da Silva. E é porque ele acreditou que eu, agora, me dou ao direito de não acreditar na despedida… Jamais será possível dizer adeus a quem pretendo reencontrar eternamente em minhas lembranças.

Não tem mais nem meio mais, Seu Norival. Hoje, a ordem é do coração e da saudade, é do som da sua voz saindo da sala no fundo da redação, é da fumaça de um cigarro para sempre aceso na janela… Está decidido: não sairemos do ar. Pode deixar o sinal sobre a porta do estúdio aceso, em vermelho escarlate, escrito em letras garrafais: NO AR. A sua voz rouca, de alguma maneira, será companhia para a dona de casa que cozinha com o rádio grudado no ouvido, vez ou outra você vai contar uma piada para o aposentado carrancudo sorrir e pedir mais um copinho de cerveja, bem gelada, é claro, porque de quente já basta a dor da saudade que começa a ser transmitida neste momento.

É na memória que nos eternizamos, ficam partes da gente guardadas dentro de cada um que se lembra de nós, como se as recordações fossem cremadas e se multiplicassem feito grãos de areia na praia… E somos espalhados por aí, em um causo de infância contado pelo melhor amigo, na foto que ela guarda com carinho, no frasco de perfume vazio que ficou na prateleira do banheiro. A cada vez que um ouvinte sintonizar uma emissora do Grupo RBP, receberá um pouco do Seu Norival; nas páginas deste jornal, ficam as impressões digitais dele, que vai cumprimentar a cada leitor sempre que chegar às bancas semanalmente. Seu Norival continuará nestas palavras, é manchete vitalícia, estampada para sempre em nossas primeiras páginas.

Já que o senhor, Seu Norival, acreditou em mim, eu vou acreditar no rádio e na comunicação, na força do verbo que o aproximou dos barrenses durante décadas. Vou continuar acreditando naquela caroninha esperta que o senhor me dava nas manhãs em que eu estava mais atrasado, e fazia vista grossa para o meu horário, afinal, quem se importa com que horas são agora? Se o relógio insistir no ponteiro do adeus, me perdoe, mas vou contrariá-lo, igual aos minutinhos a mais que o senhor me dava quando eu fazia um programa na RBP FM. Peraí, apenas mais um segundo, deixa eu tocar só mais uma música, é melhor ficar aqui na cabine, nas páginas do jornal, nos números do dial, no coração medido em frequências modulares, na sintonia da saudade… Porque o senhor, Seu Norival, vai ficar para sempre no ar em nossos corações.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Let it be

“Quando eu me encontro em momentos difíceis/ Mãe Maria vem para mim/ Falando palavras de sabedoria, deixe estar”. Ficou uma dor esquecida na caixinha de correspondência, de repente, me lembraram de cobrá-la… Contas atrasadas, dívidas que o passado deixa para o presente quitar. Dentro do envelope, a lágrima sufocada em uma noite de domingo, as ligações não atendidas, o sumiço, as ondas da praia molhando meus pés. Uma ausência, com etiqueta, exigindo atenção… Let it be, let it be…

Pela janela entrou uma brisa de felicidade, lembrando o abraço de quem está longe… O cobertor caiu no meio da madrugada, ninguém está por perto para recolocá-lo sobre mim, mas, “nas minhas horas de escuridão/ Ela está em pé, bem na minha frente/ Falando palavras de sabedoria, deixe estar”. Embora não existam respostas, as perguntas voam velozes como o vento, sopram tudo para longe, os papéis quase não param sobre a mesa, tem lembranças rabiscadas na parede, a gente se foi, mas continua sentado na esquina da sua casa… Let it, let it be…

Tinha uma garrafa de Coca-Cola na geladeira, mas ninguém para dividi-la comigo. Ficou o seu silêncio, barulhento, você esmurrando a porta para me acordar, já está na hora… Deixe estar… Não adianta buzinar, não vou descer agora, só depois que você fizer aquele meu macarrão preferido para o almoço e disser que está tudo bem, ainda que não esteja. Me espera, estou chegando, vamos dormir juntos hoje, comprei um filme novo… Calma, não rasgue a sinopse, dá uma pena danada nos ver assim, fora de cartaz… Apareça outro dia, então, tem bolinhos de chuva quentinhos, leite fresco na garrafa, só a saudade é que está azedando tudo… Let it be, let it be…

Decidido: vamos pra festa, tomar uma, duas, dez doses de felicidade… Olha lá, um copo vazio naquela mesa, não deixe esta noite se esvaziar também, a cerveja está ficando quente, não quero que a gente esfrie também… Esfriou. Que balada boa, a solidão dançando com a falta, está tocando Kid Abelha, aumente o som do carro, está calor aqui dentro… Não, pelo amor de Deus, cuidado para não perder a direção, estamos numa curva fechada, diminui aí essa velocidade, let it be, cuidado para não bater… Bateu.


Os meus livros estão fora da prateleira, quem fez toda essa bagunça, só pode ser sua culpa, me tiraram da gaveta do meio, aqueles porta-retratos não são meus, o que você fez com as minhas fotos, estou tão diferente, o que eu fiz comigo? Quase todos os CDs estão arranhados, só sobraram Milton e The Cranberries, Linger já está tocando aqui… As recordações dançam no quarto, tem desenhos estranhos na parede, somos nós dois ali naquele azulejo? Minha voz se confunde com a da música, se confunde com os sons, os que existem e os que saíram pela fresta da porta… Deixe, para sempre, estar.