segunda-feira, 24 de março de 2014

Let it be

“Quando eu me encontro em momentos difíceis/ Mãe Maria vem para mim/ Falando palavras de sabedoria, deixe estar”. Ficou uma dor esquecida na caixinha de correspondência, de repente, me lembraram de cobrá-la… Contas atrasadas, dívidas que o passado deixa para o presente quitar. Dentro do envelope, a lágrima sufocada em uma noite de domingo, as ligações não atendidas, o sumiço, as ondas da praia molhando meus pés. Uma ausência, com etiqueta, exigindo atenção… Let it be, let it be…

Pela janela entrou uma brisa de felicidade, lembrando o abraço de quem está longe… O cobertor caiu no meio da madrugada, ninguém está por perto para recolocá-lo sobre mim, mas, “nas minhas horas de escuridão/ Ela está em pé, bem na minha frente/ Falando palavras de sabedoria, deixe estar”. Embora não existam respostas, as perguntas voam velozes como o vento, sopram tudo para longe, os papéis quase não param sobre a mesa, tem lembranças rabiscadas na parede, a gente se foi, mas continua sentado na esquina da sua casa… Let it, let it be…

Tinha uma garrafa de Coca-Cola na geladeira, mas ninguém para dividi-la comigo. Ficou o seu silêncio, barulhento, você esmurrando a porta para me acordar, já está na hora… Deixe estar… Não adianta buzinar, não vou descer agora, só depois que você fizer aquele meu macarrão preferido para o almoço e disser que está tudo bem, ainda que não esteja. Me espera, estou chegando, vamos dormir juntos hoje, comprei um filme novo… Calma, não rasgue a sinopse, dá uma pena danada nos ver assim, fora de cartaz… Apareça outro dia, então, tem bolinhos de chuva quentinhos, leite fresco na garrafa, só a saudade é que está azedando tudo… Let it be, let it be…

Decidido: vamos pra festa, tomar uma, duas, dez doses de felicidade… Olha lá, um copo vazio naquela mesa, não deixe esta noite se esvaziar também, a cerveja está ficando quente, não quero que a gente esfrie também… Esfriou. Que balada boa, a solidão dançando com a falta, está tocando Kid Abelha, aumente o som do carro, está calor aqui dentro… Não, pelo amor de Deus, cuidado para não perder a direção, estamos numa curva fechada, diminui aí essa velocidade, let it be, cuidado para não bater… Bateu.


Os meus livros estão fora da prateleira, quem fez toda essa bagunça, só pode ser sua culpa, me tiraram da gaveta do meio, aqueles porta-retratos não são meus, o que você fez com as minhas fotos, estou tão diferente, o que eu fiz comigo? Quase todos os CDs estão arranhados, só sobraram Milton e The Cranberries, Linger já está tocando aqui… As recordações dançam no quarto, tem desenhos estranhos na parede, somos nós dois ali naquele azulejo? Minha voz se confunde com a da música, se confunde com os sons, os que existem e os que saíram pela fresta da porta… Deixe, para sempre, estar.