quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Tempo de morangos


Acabei de ler, pela segunda vez, o maior clássico de Clarice Lispector, ou seja, “A hora da estrela”. Este foi o último livro publicado, em vida, pela escritora – 1977 foi o ano de seu lançamento e também quando ela morreu. Na obra, a domadora de palavras encarna um narrador, chamado Rodrigo S.M, para contar a história de vida de Macabéa, uma retirante nordestina que, na minha opinião, representa todos aqueles que estão “grávidos do futuro” e não encontram meios de pari-lo e de parir-se.

A trágica morte da protagonista, provocada por um atropelamento, sela seu destino, em consonância com todos os elementos que são descritos ao longo da trama. Em meio à sensação de abandono em que Clarice nos lança, através da “quase vida” de Macabéa, a frase final do livro é um tiro certeiro: “Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos. Sim”. Me acertou em cheio.

Não faço ideia do que a autora quis dizer, exatamente, com a sentença que fecha a biografia da jovem; só o que sei é que sinto cheiro de fruta fresca no ar. A sinalização de Clarice nos convida a, mesmo em meio à podridão, encontrar laranjas maduras no pé. Não tenho dúvida de que a violência, o desemprego, a corrupção, enfim, que os males muitas vezes corroem nossas polpas conforme fazem os bichinhos que destroem as goiabas. Por vezes, acabamos sem sementes, tendo que nos contentar apenas com a casca que nos restou. Ainda assim, é tempo de morangos, de uvas, carambolas, amoras, mangas... É tempo de viver.

O termo “por enquanto” indica um estado transitório, que pode ser alterado de hoje para amanhã. Portanto, nada melhor do que aproveitar os dias, conservando-os frescos e apetitosos, sem permitir que o gosto deles se perca por falta de ter quem os aproveite de forma saudável. É tempo de morangos porque há sementes de sorrisos esperando para serem plantadas, é tempo de morangos porque o céu é um chuveiro de estrelas, é tempo de morangos porque a poesia não desiste de nos inebriar com seu vento, com seu cheiro, com seu toque de mãe. Existem morangos espalhados pelo caminho, frutas frescas à espera de quem se atreva a colhê-las. Por tanto abandono é que muitas delas estão apodrecendo e se esborrachando no chão.

A vida de Macabéa é extinta, porém, ao firmar a frase no presente, o narrador aponta a certeza de que a vida excede a morte. Neste sentido, não nos esqueçamos que, por enquanto, mesmo em meio ao caos na política, aos vermes da droga e à corrupção dos policiais, é tempo de morangos, abraços, cerejas, beijos, maçãs, amor, limão, perdão, maracujá, futuro... É tempo, sim.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Não deixe o samba morrer

O incêndio que destruiu mais de 8,4 mil fantasias de escolas de samba do Rio de Janeiro transformou em cinzas a alegria e o trabalho de muita gente. A tragédia calou, por alguns instantes, o batuque eterno que reina na Cidade do Samba. Não há dúvidas de que o Carnaval de 2011 não terá o mesmo sabor de anos anteriores: mesmo com os esforços para temperar a Marquês de Sapucaí, o amargo do acidente não será completamente esquecido.

O ocorrido me fez lembrar a importância que o samba tem para o eixo histórico cultural do Brasil. Muito além de um gênero da Música Popular Brasileira, suas raízes estão ligadas às lutas e à vida das populações mais pobres. Originalmente, as letras narravam episódios que têm relação com o cotidiano das baixadas e guetos, de modo que refletiam ideologias e soavam como um grito de liberdade de quem era silenciado pela voz do preconceito e da opressão.

Hoje, cada vez mais esquecido, o pedido de uma das maiores sambistas do país, Alcione, feito pela primeira vez em 1975, não pode nem deve ser deixado de lado: “Não deixe o samba morrer/ Não deixe o samba acabar/ O morro foi feito de samba/ De samba, pra gente sambar”, suplica a Marrom. Infelizmente, o lamento não vem sendo ouvido no século XXI e o incêndio nos becos do samba já começou há muito tempo. Não somente fantasias estão virando pó; o próprio samba, perdido na fumaça do abandono, é quem está correndo risco de vida.

Enquanto grandes nomes, como Martinho da Vila, Zeca Pagodinho, Beth Carvalho e até mesmo Alcione, vão perdendo espaço, o palco está sendo invadido por vozes que não se encontram nem fazem parte de um mesmo coro. Não se trata de simples saudosismo, e sim da consciência de que, atualmente, as letras do que costumam chamar de samba não passa de um borogodó desandado, que não contém o gingado das rodas de bamba nem o rebolado das morenas. Surgem os “sorrisos” da vida, que, de marotos, não têm nada; estão mais para risinhos amarelos. O samba de agora não encanta, não contagia, não dá vontade de dançar no sapatinho... Cadê o milagre dos pés mexerem apenas pelo encantamento? Ninguém sabe, ninguém viu. Tem gente cantando samba sem pandeiro.

O fogo na Cidade do Samba me remeteu ao que está acontecendo nos bastidores da MPB. Por todo canto, só se vêem cinzas, cinzas e, surpresa!, cinzas. A destruição do samba é similar a que atinge o funk, que surgiu como uma expressão do sofrimento e da exclusão social e que, hoje, não passa de um conjunto de palavras e xingamentos que não dizem nada de coisa alguma.

“Antes de me despedir, deixo ao sambista mais novo o meu pedido final: não deixe o samba morrer.” Pelo visto, o fogo e o barulho são tantos que ninguém está ouvindo mais a agonia deste velho guerreiro.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Pontes para lugar nenhum

Você pode até não ter percebido, mas já atravessou alguma ponte hoje. Para ir de uma margem à outra de algum lugar, para atravessar rios e caminhar sobre as águas, é necessário que passemos por esses caminhos, ora estreitos, ora largos. Pontes nos levam ao outro lado, servindo de igual passagem para grandes caminhões e pequenos fusquinhas. No caso de algumas delas, não importa o tamanho do que por ali vai passar: o importante mesmo é preencher o vazio, conectar extremos que, sem estes ligamentos, jamais poderiam abraçar-se. Há milhares de pontes espalhadas pelo Brasil e pelo mundo, no entanto, seria bom que passássemos a construí-las também entre as pessoas.

Há muita gente perdida, vivendo às margens da vida porque não há travessas que as ligue ao lado de lá do dia a dia. Geralmente, quem fica sem pontes são aqueles que viram suas passarelas serem bombardeadas pelo preconceito, sendo jogados na profundidade do desconhecido no momento em que tentavam apenas atravessar. Há quem foi lançado à água simplesmente porque exige ter o direito de ir e vir.

Homossexuais, ex-presidiários, prostitutas, mendigos, travestis, excluídos socialmente... Quanta gente tem sido impedida de fazer a travessia! Convictos de que somos os seres humanos mais corretos que já pisaram na face da Terra, nos sentimos no direito de destruir as pontes que ligam esses indivíduos ao mínimo necessário para ser considerado gente. Com nossas palavras desastrosas e nossos gestos de exclusão, desligamos essas – e milhões de outras – pessoas das estradas que as levariam ao sol. Observando as travessias de quem quer chegar onde estamos, nossos olhos cruéis lançam as bombas... Boom! E a ponte vai pelos ares através de uma palavra.

A diversidade do que existe no mundo, quando bem aproveitada, pode tornar-se uma fonte natural e inesgotável de belezas e aprendizados. Assim como a água, que nasce naturalmente das pedras, nós também poderíamos aproveitar as rochas do dia a dia para aprender a tirar delas líquido necessário para matar a sede que sentimos de justiça. Desperdiçando os traços de quem vive nos terrenos do holocausto que provocamos diariamente, vemos nossa própria paisagem ser empobrecida, pois a ondulação da diferença do outro enriquece e aperfeiçoa as linhas que formam o desenho de nossas personalidades.

O isolamento está sendo provocado pela ausência de conexões entre a humanidade, que se equivocou ao perceber na diversidade um ataque à dignidade e à honra do povo. Não matam os excluídos em câmaras de gás, mas os sufocam através de outros meios e torturas. Com a ausência das pontes, perde quem fica do lado de cá, morre quem é abandonado do lado de lá.

O que temos erguido entre nós são pontes que não nos levam a lugar nenhum. Pelo contrário, são estradas esburacas e frias, becos sem saída, que somente nos privam de desbravar o que há além do horizonte das diferenças. O lado de cá da margem é apenas um pouco do muito do que ainda temos a descobrir. Se construirmos pontes que nos levem ao lado de lá, acabaremos tocando alguma coisa. Alguém.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Levantado do Chão

Ainda nem comecei a ler o livro “Levantado do Chão” e já quero escrever sobre ele. É este o efeito que as obras de José Saramago têm sobre mim e, com essa, não poderia ser diferente. O texto da contracapa da nova edição do título em questão é finalizado com as seguintes frases: “Do chão sabemos que se levantam as searas e as árvores, levantam-se os animais que correm os campos ou voam por cima deles, levantam-se os homens e as suas esperanças. Também do chão pode levantar-se um livro, como uma espiga de trigo ou uma flor brava. Ou uma ave. Ou uma bandeira. Enfim, cá estou outra vez a sonhar. Como os homens a quem me dirijo”.

Como sempre, utilizando sua capacidade de nos sugar para dentro de suas narrativas, o escritor português me causou espanto com as palavras acima. Sem dúvidas, concordo com ele. Que mais se levanta do chão? Nós. A vida.

Do chão se levanta uma mão que pede ajuda ou um abraço para socorrer quem quer descer. Se levantam os versos e o silêncio, a poesia da chuva que cai e evapora, o mistério da semente que é plantada e não germina, o susto que há na fertilidade em meio ao podre do lamaçal. Do chão se tiram muito mais do que hortaliças ou legumes: se arrancam lições e aprendizados. Do chão se levantam os bebês, mas nem sempre os adultos: muitas vezes é ali que eles ficam pro resto da vida.

Do chão se levantam os pés fadigados, o passo que quer ir adiante, o repouso que cansou de esperar, as esperanças que resolvem por pegadas na estrada. É do chão que partem os começos e é lá que eles, após transformar-se em finais, se espatifam, estilhaçados pela ação do que não conseguiu pousar. Do chão a água se levanta e volta. Do chão viemos e para ele voltaremos, quando não for mais possível se levantar. Do chão se levantam os que caíram, mas nem sempre os vencedores: muitos ganharam dos outros, entretanto, perderam para si mesmos.

Também do chão pode levantar-se um grito, como um galho de uma árvore ou tatu bravo. Ou um gavião. Ou estrelas. Enfim, cá estou outra vez a sonhar e a ver poesia se levantando do chão, onde se encontram, provavelmente, agora, muitos dos homens a quem me dirijo.