segunda-feira, 2 de julho de 2012

Nós, histórias

A noite em que vocês saíram juntos e, depois de muito chove-não-molha, enfim rolou o primeiro beijo. Aquele acampamento em que tudo deu errado, e a tempestade inundou sua barraca furada. As risadas. O último café da manhã que vocês tomaram, o leite quente pra compensar o beijo gelado, as migalhas de pão se parecendo com as raspas do amor que restou. As lágrimas. O recomeço. Mochila cheia, “era uma vez” de novo, o adeus dos personagens que mais gostávamos, a chegada de capítulos inéditos. Um dia, todos nós viramos histórias.
     Talvez, a gente nem perceba, mas, a cada manhã, escrevemos (e somos escritos em) uma trama, cheia de protagonistas, algozes, reviravoltas e desfechos inesperados. O papel que assumimos varia, depende do calor da circunstância, da máscara que vestimos no momento em que vamos interpretá-lo. Sim, todos já fomos inúmeras vezes vilões, principalmente quando fingimos que o mal não se aninhou dentro de nós.
Muquiranas ao negar ajuda financeira a quem precisava, ladrões ao roubar a verdade de quem tinha direito de sabê-la, assassinos ao sacramentar a morte da esperança que poderíamos reviver, loucos ao entender sanidade como multidão, sequestradores ao cobrar resgate por um sorriso... Fomos ardilosos em diversos capítulos decisivos, nos segundos finais da novela, e, por nossa insistência em fingir que somos sempre mocinhos, perdemos a chance de mudar o rumo da história.
    Em contrapartida, também já fomos heróis, que saltaram das alturas da vaidade para socorrer um amigo, que cortaram cabeças dos dragões da depressão para evitar que ela fosse engolida. Temos um He-Man em nós, mas, diferentemente do musculoso herói dos anos 80, nossa força não vem dos poderes de Grayskull; vem do coração. E, assim, as histórias vão se desenrolando, de acordo com nossas atitudes, ora se revelando dramáticas e tristes, ora nos surpreendendo com sorrisos arrancados de pedras.
    Um dia, vamos todos virar um conto, uma narração, uma história na boca de alguém que se lembrará de nossos feitos, a lágrima de um simpatizante de nossos personagens. Um dia, todos nós seremos o ponto final, a vírgula, o detalhe de uma tarde na praia, o vilão que salvou o passeio, ou o chato que estragou tudo. O “era uma vez” chegará, e haverá duas alternativas prováveis para o nosso final: ou seremos um trecho gostoso de outras vidas, ou o capítulo que preferem deixar esquecido.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

O dia em que a casa caiu

  Pela rua, vejo casas lindas, atraentes, admiráveis, mas que, aparentemente retraídas, parecem vazias por dentro. Mesmo assim, são exuberantes, maravilhosas, coloridas pelo tom glacê com o qual eu gostaria de pintar a minha. Durante muito tempo, sonhei em residir num desses locais, e até cheguei a conseguir, até o dia em que descobri que moradias de aluguel não se sustentam por muito tempo. Sempre chega a hora de voltar para nossa verdadeira residência – e foi isso que aconteceu comigo.

  Retornei ao meu lar genuíno, mais cheinho e espaçoso, que ocupa um maior terreno físico, com rachaduras expostas na fachada frontal. Voltei a mim, no entanto, parece impossível abandonar a fantasia de que aquela casa na rua da frente seria melhor, de que eu seria mais feliz onde as portas fossem maiores e mais convidativas, onde houvesse salão de festas para me reunir com os amigos. Mas, não pertenço a esse tipo de imóveis; tenho poucas janelas (embora amplas), que me permitem enxergar “apenas” os caminhos além das colinas.

  Preciso aprender a ser feliz nesta casa que sou: maior, com cômodos abarrotados de sentimentos e esperanças, de amarguras esparramadas encima da mesa, de sonhos escondidos debaixo da cama. Às vezes, não me caibo nela, de tanto amor sentado na sala, mas é esta a moradia que posso chamar de minha, a que me entregaram sem aviso prévio, sem gramado no jardim da frente, porém, verde onde não se pode ver.

  Sou uma casa que envelheceu por causa das enxurradas, que empalideceu por conta das enchentes. Sim, há um pouco de mofo aqui e ali, mas, também, algumas belezas, que insistem em reluzir na cristaleira do quarto. Sou dessas cheias de porta retratos, porque a memória não me deixa esquecer o que fui, e o que quero ser, e o que se perdeu, e o que desejo achar, e o que. Necessário se faz que eu me acomode aqui, dentro, aprendendo a enxergar a infinitude da casa onde moro, esquecendo, aos poucos, as falsas imagens das casas onde já morei.

  Agora, não tem jeito: as residências da rua podem até continuar sendo atraentes, mas é na minha que terei que me arranjar. Quero aprender a pintar os cantinhos que as tristezas desbotaram, a costurar as cortinas rasgadas pelo temporal da minha ausência, a refazer o chão, desenhado com giz, para que o caminho possa sempre ser redefinido. Há, sim, várias casas lindas do outro lado da calçada, o que não significa que a minha, aqui deste, também não possa ser bonita.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Despedida

  No último fim de semana, o coração de minhas irmãs M. e G. foi golpeado violentamente, e, por tabela, o meu também. Morreu a mãe dela e um pouco minha, a quem eu chamava quando criança, com carinho, de Tia Dinda, por se tratar da madrinha de meu irmão. Um câncer tirou-a de nós, paralisando nossos sorrisos e nos deixando, talvez para sempre, com um tumor que quimioterapia nenhuma é capaz de destruir: saudade.

  Sozinho, não conseguirei falar dela, pois mal começo a escrever e as lágrimas me lembram que Tia Dinda não está mais a um telefonema de distância. A partir de agora, só em pensamento é que vou poder abraçá-la, pedindo que me benza antes de sair de sua casa altas horas da noite, que engrosse o caldo do feijão, porque precisaremos de sustância para suportar a eterna fome de sua presença. Então, primeiramente, recorro aos versos de Chico: “Oh, pedaço de mim/ Oh, metade amputada de mim/ (...) A saudade é o revés de um parto/ A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu”.

  Quando alguém que amamos parte para nunca mais, é assim que passamos a viver: sofrendo a dor de parir pra dentro. A agonia é sem fim porque o luto, ao contrário de uma gestação, não dura apenas nove meses; permanece chutando nossa barriga a vida inteira. A morte de Tia Dinda semeou um feto em nossos corações, que, por hora, ainda grita, sentindo a falta da mãe que se foi. Um dia, o bebê-saudade haverá de se transformar em esperança, deitando no travesseiro das lembranças que ela deixou, dormindo com a sensação de que ela ainda está cantarolando enquanto faz o almoço ou estende a roupa no varal.

  Porém, enquanto isso, a saudade de Tia Dinda nos bagunça, tira os lençóis da cama, vira-nos do avesso. Agora, estamos aqui, com nossos quartos desarrumados, porque somente ela sabia como alinhar os travesseiros. Falta ela com seu jeito sistemático de querer organizar o mundo, de se preocupar que nada estivesse fora do lugar. Agora, Tia Dinda, por ironia do destino, nós é que ficamos desajeitados com a sua partida. Continuaremos temendo a chuva, já que a senhora tinha pavor de trovões, mas já não teremos receio quanto às enchentes, porque termos sido inundados pela dor de perdê-la foi suficiente para causar estragos. Por favor, nos ajude a limpar o lamaçal dessa tempestade.

  A poetisa Elisa Lucinda, por ocasião da morte de sua mãe, escreveu um poema para lembrá-la. “Que desperdício/ que descuido/ (...) Não de ela perder a vida/ mas a vida de perdê-la”, diz um dos versos do texto. O mesmo se aplica a Tia Dinda: que pena para nós ter que lhe dizer adeus – ou até breve. Quero, ainda, citar Adélia Prado, sussurrando uns versinhos para minha amada tia: “...mãe, mãezinha, mamãezinha, mamãe, e o reino do céu é um festim, quem escondeu isto de você e de mim?”.

  Durante todo o tempo em que redigi esta crônica, chorei. Então, Tia Dinda, mesmo com seu medo de chuva, rogo que nos ajude a atravessar a tempestade que começou quando seus olhos se apagaram e, consequentemente, o sol também.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Saudade de ontem


   Ontem, antes de a gula me assaltar e me roubar a leveza, eu era mais. Hoje, restou apenas a alma pesada, quilos a mais de tristeza. Sou hoje a fome de ser quem nunca fui, ou de resgatar o que fui e nunca soube. Sou os farelos que caem do pão no café da manhã, as cascas desnecessárias que são assopradas da mesa, espalhando-se pelo chão. Sou uma manteiga derretida, que não para sobre a colher; não consigo me conter no miolo. Escorro.
  Sou um calendário de dez anos atrás, folhinhas de datas que já mereceram destaque em vermelho, mas que, agora, não são mais do que dias ultrapassados. Hoje, me pareço com um produto fora do prazo de validade – acho que esqueceram de me retirar da prateleira. Sou o apetite voraz pelo que a balança jamais me permitiu alcançar, dois dígitos que, em meio a milhares de zero, não podem ser mensurados.
  Tudo que sou hoje é uma correspondência aberta que não chegou ao seu destinatário, uma carta emocionante demais que pararam de ler no segundo parágrafo. Sou a xícara de chá sozinha, sem café ou qualquer outro líquido que lhe dê algum sentido. Me adocei em excesso e, portanto, me encaixo nas medidas de poucos cardápios. Sou o líquido que entornou da chaleira e ficou esquecido sobre o fogão, o fervor de um leite que só se lamenta depois que já foi derramado.
  Perdi na queda de braço e a gula me acertou os ossos. Como consequência, minha força encheu-se de fragilidades, estilhando-se ao sacolejar de qualquer vento, esmorecendo antes mesmo do primeiro round. Tornei-me a lágrima que cai imperceptível no canto do olho, que escorre pelo cantinho da face e que, sem ter uma mão que a limpe, acaba perdendo o caminho de virar alegria. Tudo que sou hoje é o sorriso congelado na foto, a felicidade que foi emoldurada e não consegue se colocar em movimento.
  As portas do meu coração foram arrombadas e, no saqueamento, levaram as minhas jóias de motivação, deixando para trás apenas o ouro falso da baixa auto-estima. Mas, quando a saudade de ontem me permitir pensar no amanhã, quando enfim eu descobrir um modo de pagar o resgate do que perdi, quero muito voltar a ser tudo, quero muito voltar a ser eu.