quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Vulcão em erupção

Passava uma reportagem na TV a respeito de atividades vulcânicas pelo mundo, quando ela se viu, enfim, entrar em erupção. Pegou papel e caneta, sentou-se, sozinha, à mesa da sala e começou a expelir seus sentimentos, que despertaram quentes como fogo, devastadores como larvas.

“Pronto, aconteceu. Meu coração resolveu explodir, e agora, salve-se quem puder – salve-me quem puder. Seu olhar está me queimando, está aquecendo terras que há muito tempo não sabiam o que era calor. Pára, sai de perto de mim com este sorriso que me faz querer sorrir também, vai pra longe com esta voz que me dá vontade de calar só para poder ouvi-la melhor, sai de dentro do meu coração, pois não sei até quando conseguirei fingir que você não está ocupando a sala inteira. Sai daqui, antes que eu tenha que me expulsar para que a sua presença reine absoluta.

Meus disfarces são de quinta categoria, feitos por um alfaiate que não aprendeu a costurar fantasias para si mesmo. Não sei brincar de esconde-esconde e se eu resolver fazer isso, logo, logo ouvirei dizê-lo: ‘1, 2, 3! Achei você’. Me escondo nos lugares mais óbvios, não tenho a menor criatividade para construir esconderijos fora da minha terra, fora dos limites do meu terreno, fora do meu olhar. Olha só quanta idiotice: agora, por exemplo, estou tentando me esconder neste texto, nestas palavras que só me expõem ao risco de ser achada por todo mundo e me perder de si própria.

Poxa, não fica por perto não. Este seu abraço tá me tirando de um sono profundo, mas não parece capaz de me segurar quando a lucidez, finalmente, chegar. Estou em erupção! Esta carta está derramando sentimentos que queimam feito larvas, que latejam feito fogo. Estou me derramando junto com eles e tenho quase certeza que você nem imagina que é por você. Mas é, garoto. Sai daqui enquanto ainda dá tempo de você não me ganhar de mim.

Vê se me entende, colabora aí, vai. Faça o que você quiser, fique com quem te der na telha, só não me invade com esta risada que me inunda, só não me engana com este abraço que me aquece, só não me fala com esta boca que não quer me beijar. Se toca, cara. Cai fora deste barco porque o estou remando sem direção, salta deste trem desgovernado enquanto ainda dá tempo, corre deste circo onde o palhaço não sabe como fazer graça.

Estou te desejando. Desejando ficar ao seu lado durante os jogos da próxima Copa do Mundo, desejando não sair de perto quando todos forem para longe, desejando a tua presença para não fazer valer a minha ausência. É em você que penso quando jogo moedinhas para o alto na fonte dos desejos, é o teu nome que eu chamo quando me esqueço do meu, é o seu carinho que eu quero quando nada mais acalenta.

Sai de perto, vai pra longe, cai fora. Estou em erupção depois de muito tempo adormecida, estou pegando fogo após um longo período de sono profundo. Minha erupção é honesta, bruta, sincera, calada. Meu fogo sai na forma de sua matéria mais oposta: água. São através das lágrimas que consigo expelir minhas larvas mais quentes. Estou em atividade! Meu vulcão interior acordou e agora sou quem não durmo direito”.

Terminando de escrever estas palavras, ela dobrou o papel e o colocou dentro de um envelope de carta. Foi até a casa dele e se depositou na caixinha dos Correios.

Quando nós estamos em erupção, só queimando é que conseguimos nos curar novamente.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Pra rua me levar

“Divã” é o livro que mais marcou minha vida até hoje. Escrita por Martha Medeiros - uma de minhas musas inspiradoras -, a história de Mercedez foi parar também nas telonas. No filme, a protagonista ganha vida na pele de Lília Cabral, uma atriz dotada de tanto talento que elogiá-la aqui seria redundante.

A trilha sonora do longa “Divã” o torna uma obra ainda mais completa, onde todos os elementos estão em sintonia, se completam. Entre as músicas que embalam as idas e vindas de Mercedez está “Pra rua me levar”, sucesso consagrado na voz de Ana Carolina.

A canção mencionada dá o tom das cenas finais do filme. “Vou deixar a rua me levar, ver a cidade se acender...” É ao som destes versos que Mercedez sai de cena; é com eles que vou entrar: também quero que a rua me leve.

Vou deixar a rua me levar até onde meus pés nunca pisaram por medo, até onde minhas mãos nunca tocaram por frieza, até onde meus olhos nunca alcançaram por falta de idealismo. Quero que a rua me leve aos meus caminhos mais desconhecidos, me ajude a encontrar meus mananciais mais secretos e escondidos, que por isso mesmo são os mais límpidos e claros. Vou deixar a rua me levar para o que não conheço e recuso pelo excesso de lucidez.

Vou deixar a rua me levar para onde nunca fui, para caminhos que já conheço mas quero redescobrir, para pessoas que já amo mas quero reencontrar, para gostos que já sei mas quero saborear novamente. Vou com a rua experimentar os meus excessos, na tentativa de conseguir contê-los, antes que eles contenham a mim. Quero que a rua me leve aos mendigos que sou quando suplico pelo amor de alguém, às prostitutas em que me transformo quando vendo minhas opiniões e mantenho-me alheio a minha própria vontade, aos assaltos que realizo quando roubo de alguém o direito a verdade. Vou deixar a rua me levar para o que sou e desprezo pelo excesso de hipocrisia.

Quero que a rua me leve aos becos e vielas, complexos e favelas, jardins e precipícios, vidas e desperdícios. Vou ao encontro do que perdi tentando encontrar nos outros o tom da minha própria melodia, vou em direção ao que construí em terrenos que não me pertencem, ao que entreguei de bandeja nas mãos de destinatários errados. Com a rua quero encontrar o sórdido, o imperfeito, o que não é límpido em mim mas insisto em disfarçar, o que não sinto mas cismo em inventar, o que não quero e acabo por aceitar. Vou deixar a rua me levar para os personagens que me tornei não sendo eu.

Quero que a rua me leve ao amor que não cala pelo receio de ser vivido, até onde não se morre por medo da vida, ao local onde esquecemos que o essencial só faz diferença quando dito.

Vou deixar a rua me levar, e quando a cidade se acender a lua vai banhá-la, me lembrando de que meu maior desejo será sempre o de ser iluminado por dentro para conviver bem com as curvas das ruas que me conduzem pra fora.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Fantasias

Eu tenho as minhas, você tem as suas, o rapaz tímido que cruzou o seu caminho hoje de manhã tem as dele, e até a beata da esquina, que vive com a bíblia embaixo do braço, tem as dela. Não há quem possa suportar a realidade sem cultivar um punhado de fantasias.

Existem algumas épocas do ano das quais a gente vira refém, e carnaval é uma delas. Agora deram pra inventar que somente nestes quatro dias do ano é que podemos tirar nossas fantasias do armário. Milhares de pessoas estão economizando seus desejos para viver todos, de uma só vez, durante horas anestesiadas pela folia, durante momentos com a própria voz abafada pelo axé, durante situações em que a lucidez tem medo até da própria loucura. Não é à toa que muitos corações morrem de overdose ao longo do carnaval.

“Custei a compreender que a fantasia é um troço que o cara tira no carnaval e usa nos outros dias por toda a vida”. Palavras de João Bosco e Aldir Blanc, ícones da Música Popular Brasileira. Ao contrário do que muitos pensam, é no carnaval que quase todos se despem, utilizando por fora as fantasias que expressam aquilo que insistem em esconder por dentro.

Seria melhor se respeitássemos nossas fantasias enquanto elas fossem por inteiro, genuínas, originais de fábrica. Seria bem mais bacana se nosso bloco desfilasse quando desse na telha, quando a colombina que pula em nosso olhar resolvesse fazer bagunça na sala, quando nos desse aquela louca vontade de enfeitar a vida com confetes e serpentinas. O que me entristece no carnaval é perceber que é preciso tanto alvoroço para presenciar o trivial: a folia dos palhaços que trazemos guardados na saudade.

Entre fantasia e loucura há um pequeno, porém significante fio. Fantasia é acreditar que por um instante o céu conversa conosco, é vislumbrar na multidão o silêncio contido em todo aquele barulho, é se permitir fugir da sensatez por alguns momentos, é experimentar uma primeira vez de novo. Loucura é excesso, é falta, é a fantasia virada do avesso, é o desejo que sucumbiu.

Gosto mais das fantasias que deixamos para viver entre quatro paredes com aquela pessoa especial, dos nossos desejos mais íntimos e secretos, aqueles que nos reconciliam com nossa parte mais escondida e misteriosa. Fantasias que nos tornam melhores, que restabelecem nosso brilho no olhar, que nos convencem que a realidade não é nada sem um pouco de sonho.

De fato, as melhores fantasias são aquelas que não precisarão virar cinzas quando a quarta feira chegar.