quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Desperdício de vida

O governo implementou o Horário de Verão no Brasil com o intuito de minimizar o desperdício de energia elétrica. Há inúmeros movimentos que visam conscientizar a população quanto à necessidade de evitar o desperdício de água. Economistas e profissionais do ramo não deixam de ensinar às pessoas o que fazer para não desperdiçar dinheiro, bem como pais rezam a mesma cartilha para seus filhos. Concordo com todas as ações mencionadas acima, mas lamento, profundamente, que sejamos tão relapsos quando o assunto é o desperdício de vida.

Diariamente, deixamos que uma grande quantidade de vida escorra por entre os dedos de nossas mãos. Não fechamos a torneira interior que nos inunda de sensações e sentimentos negativos, e, consequentemente, afogam nossos sonhos e nossas reais necessidades. Existem indivíduos cada vez mais preocupados em não desperdiçar tempo com “besteiras”, mas que acabam, de fato, fazendo isso, sem perceberem, ao desprezar situações que poderiam se transformar em momentos eternos. É justamente por prezar somente o que se pode enxergar que a morte vem se tornando visível a olho nu em nossa sociedade... Nossas nascentes de vida estão muito poluídas.

Desperdiçamos vida com o stress desnecessário, ficando horas de mau humor, deixando de construir e cultivar relacionamentos sólidos e duradouros, pondo de lado a espiritualidade, esquecendo os amigos, desacreditando do poder do amor, não perdoando alguém que nos traiu brutalmente, entre tantas outras práticas, vistas como normais e comuns nos dias de hoje. Acatando a ideia de que o desperdício de vida se tornou banal na atualidade, estamos nos tornando seres cada vez mais áridos e desertos por dentro. Há pessoas que choram porque só conseguem molhar a face, quando, na verdade, é o coração que está seco e necessitaria de um gesto que pudesse irrigá-lo.

Vivemos uma escassez assustadora de abraços singelos, que nos aquecem também o olhar; de beijos verdadeiramente amorosos, sem dependerem intrinsecamente do sexo para serem legitimados como tal; de minutos do dia a dia dedicados à oração e à reflexão; enfim, de uma série de medidas que poderiam nos tornar pessoas muito mais vivas, não fosse a insistência que temos em trocar vida por dinheiro. Não é à toa que muitos se preocupam apenas em comprar casas e jóias, esquecendo-se de que a felicidade não é alcançada através de cifras. Somente com vida é que se pode adquiri-la!

Há um número crescente de pessoas dedicadas a não medir esforços para evitar o desperdício de tantas substâncias e fontes vitais à humanidade, no entanto, quase não se fala no cultivo do maior bem que temos. E, depois, ainda queremos nos justificar, dizendo que o término precoce dos relacionamentos, a crise nas famílias e a solidão são conseqüências desse mundo de hoje, “Tão imediatista!”, “Tão consumista!”. Nada disso. A escassez de vida é apenas um sintoma do nosso descaso com ela.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

A benção dos humanos

Entre os tantos livros que já li de José Saramago, escritor português morto há alguns meses, “Memorial do Convento” aparece entre os melhores. O ponto de partida dessa trama é a construção de um monumento histórico, ou seja, o convento que aparece no título, fato que se desdobra em um leque de tramas paralelas fabulosas e revela personagens inesquecíveis.

Um deles é o padre Bartolomeu de Gusmão, um religioso que tem um sonho bastante ousado para a época – século XVIII – em que a trama da obra se passa: voar. Para tanto, o homem pretendia construir o que chama de passarola, máquina que lhe proporcionaria o alcance de tal feito. Os detalhes que envolvem essa curiosa invenção podem ser conferidos no livro, mas o que quero destacar é uma frase dita por Bartolomeu num dado ponto da história.

Em meio a um momento de dor e confusão mental, quando dois personagens pedem ao sacerdote que os abençoe, ele retruca: “(...) Abençoem-se antes um ao outro, é quanto basta, pudessem ser todas as bênçãos como essa”. No exato instante em que me deparei com essa intrigante resposta, pus-me a pensar que os milagres que, frequentemente, pedimos ao céu podem estar a um triz de nossas mãos. Quem dera que ao olhar tanto para o alto não perdêssemos a clara noção do que acontece ao nosso lado.

Todos os dias, milhares de pessoas pelo mundo oram e pedem a Deus que as abençoe, correm às igrejas para rogar por feitos espetaculosos, suplicam aos habitantes do reino celestial que olhem para a desordem e caos que se instalaram cá embaixo. Obviamente, cada uma dessas práticas é válida, mas só se concretiza, de fato, quando antes nós abençoamos uns aos outros, fazendo com que Cristo possa agir por meio de nossas mãos.

Há sempre um amigo esperando pela benção de um abraço, existem mendigos aguardando pela benção de um pedaço de pão e de um pouco de atenção, há filhos indo dormir sem serem abençoados pela benção do amor de seus pais, existem pessoas que caminham pela vida sem serem agraciadas com a benção de um amor verdadeiro. Esses milagres, e tantos outros, são passíveis de serem realizados por mim, por você ou por qualquer outra pessoa que carregue no coração a maior graça de todas: a multiplicação da solidariedade e do afeto que remove montanhas.

Muitos fiéis rogam a Deus que sejam abençoados com carros, mansões, empregos, situação financeira estável, namorado honesto, família harmoniosa, no entanto, não se levantam dos bancos das igrejas para tornar real a graça que tanto almejam. Há milagres acontecendo o tempo todo, em silêncio, sem que seja preciso a abertura do Mar Vermelho ou caminhar sobre as águas para que sejam evidenciados. Pudessem ser as bênçãos dos humanos tão grandiosas quanto essas em verdade e graça e não haveria tantas ressurreições sendo evitadas por aí.