domingo, 28 de março de 2010

Cavando até o fundo

Fazia tempo que eu não assistia a algo tão tocante quanto “A Princesa e o Sapo”, o mais novo clássico em 2D dos estúdios de Walt Disney. Na trama, baseada numa história original escrita pelos aclamados cineastas John Musker e Ron Clements (de “A Pequena Sereia”, “'Aladdin” e “Hercules”), que também assinam a direção do filme, Tiana é uma jovem afro-americana que vive na lendária cidade de Nova Orleans.

Tendo como principal meta de vida a realização de um sonho herdado do pai, a mocinha se vê envolvida numa enrascada ao beijar um príncipe-sapo e, contrariando a lógica dos contos de fada, transformar-se também em uma comedora de moscas.

A partir de então, a produção, repleta de encantos e de musicais fabulosos, engata em um ritmo apaixonante, onde ambos os personagens principais precisarão descobrir o que realmente precisam para conseguirem ser aquilo que desejam: humanos.

Em uma das canções entoadas ao longo do filme, uma velha feiticeira tenta explicar aos protagonistas como é que se faz para encontrar a essência de si mesmos, para ir até onde mora o que realmente importa dentro de nós. “Cavando mais, até o fundo / Só assim vão descobrir o que precisam ver / O brilho do sol / Cavando mais, até o fundo / Pra se conhecer / O que será que vai aparecer? / Cave até o fundo e vai saber”.

O que há além destes sorrisos rasos que distribuímos no dia a dia? O que existe no fundo destes abraços superficiais com os quais nos contentamos por aí? Se tivéssemos a coragem de cavar mais, até o fundo, descobriríamos em nossas terras muita riqueza, encontraríamos nos terrenos do outro algo muito mais valioso do que o petróleo.

Acostumados a atracar nossos barcos à beira, perdemos o melhor das pessoas, que sempre repousa no fundo delas. Se a esposa tivesse coragem para cavar até o fundo de si própria, teria olhos para perceber a insegurança do marido, que, por sua vez, se sentiria tocado ao ter sido percebido além do que se pode ver, fato que, possivelmente, o levaria também a querer conhecer o que a mulher guarda em seu baú.

Existe alguém que mora atrás do silêncio de seu amado, há vida depois da vaidade que seu amigo expõe, mora um belíssimo sorriso dentro da melancolia em que sua mãe se esconde. Nossa falta de coragem para cavar até o fundo nos aprisiona ao pouco que vaza na superfície, nos faz reféns daquilo que é efêmero e nos impede de descobrir a energia que cada um traz no coração.

Quer descobrir o que precisa de verdade, onde moram o amor e a verdade, a felicidade e o contentamento, o petróleo e o que nos dá vida? Cave até o fundo e vai saber.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Falta em excesso

Você me chamaria de louco se eu dissesse que já estou com saudade sua, mesmo tendo pouco menos de uma hora que te deixei na porta do ônibus? Se a resposta for positiva, pode preparar a garganta para me chamar de doido varrido, pois é isso que estou sentindo agora, esta coisa grande como o meu amor, que implora pela sua presença, ainda que sua ausência me faça companhia.

Não, não é saudade. É falta o que sinto de você – e sinto em excesso. E o excesso é tão grande que enche o meu vazio de você, transformando-o em um monte de espacinhos, onde eu fico, feito um bobo, desenhando teu sorriso. Porque só o que você vem de você é capaz de colorir esta minha aquarela, tão desbotada pela ação dos muitos sorrisos que já desperdicei na tentativa de me pintar por dentro.

Quando você se afasta, meu sorriso perde um pouco a graça. Se você não estiver me assistindo, meu programa sai do ar e a plateia do meu coração grita pedindo mais. Se você não estiver me lendo, meu texto perde a coesão e a coerência: pontuo onde deveria pausar, insiro vírgulas onde deveria exclamar, crio parágrafos onde deveria encerrar. E se você não me ouve, minha voz deixa de ser canção e torna-se desafinada, deixa de ser som suave e se transforma em canto daquelas bandas jovens que gritam demais.

Me empresta seu abraço pra eu me aquecer? Me empresta seu peito pra eu morar? Me empresa seu sorriso pra eu brilhar? Me empresta sua força pra eu vencer? Me empresta seu medo pra eu ter coragem de te enfrentar? Eu só queria que você sentisse o quanto eu sinto por saber que você tem medo de se enxergar através de mim. Porque não, definitivamente, você não tem medo de mim: você tem medo é de você.

Vem, eu te ajudo a vencer. Eu preencho este seu rascunho e te transformo em arte final, revisada, pronta para enfeitar a vida. Deixa que eu te rabisco, conserto, enfeito. Mas, me dá o pincel? Teu olhar é o pincel! Me dá o tom? Tua voz é a melodia. Me dá o fogo? Teu beijo é a fogueira. Me dá o calor? Teu abraço é o lugar mais aquecido do mundo.

Encho esta página em branco com estas palavras porque ao menos elas se deixam preencher por mim. Queria, na verdade, estar recheando o teu coração, tão cheio de marcas e de poços profundos, dos quais ouço você gritar, em silêncio, por ajuda. Estou aqui, meu amor. Eu ouço o que você não diz.

A falta que sinto de você me deixa excessivamente piegas. É mesmo coisa de doido varrido sentir algo em um mundo onde as pessoas mais parecem robôs, produzindo sentimentos em série, tão mecânicos quanto um carro. Por que nos descartamos como uma latinha de Coca Cola?

Recuso o refrigerante gelado, os agitos mais badalados, os melhores filmes. Por mais que eu insista, minha alegria vem sempre fracionada, meu contentamento nunca chega completo. Te quero, portanto, porque não agüento mais fazer festa pela metade.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Feliz aniversário

No próximo dia 22 é meu aniversário. Meus documentos me dizem que completarei 20 anos, mas o tempo de vida que tenho, realmente, ninguém sabe. Idades só há duas: ou se está vivo ou morto.

A frase anterior é mais uma das tantas definições precisas de Mário Quintana, que, devido a atemporalidade de sua obra, morreu mas permanece vivo, possui as duas idades que reconhecia. Geralmente, nós acreditamos que a data do nosso aniversário é a ideal para zerar nossos dias, para recomeçar. No entanto, se tivéssemos um olhar um pouco mais atento, perceberíamos que dá pra nascer de novo todos os dias. Basta desaprender o velho receio de mudar.

Ao contrário do que todos pensam, faço aniversário cada vez que me permito nascer para uma nova ideia ou pensamento, cada vez que avanço a rumo a uma parte de mim que desconheço. Aniversario todos os dias em que vivo minha vida de um jeito diferente, em que não me deixo aprisionar por um tempo que só existe quando é construído por mim. Faço aniversário às segundas e sextas, de vez em quando às quartas e quintas: completo um ano sempre que fecho um ciclo e inicio um outro, ciente de que, o que não foi, não deve atrapalhar o que ainda pode ser.

Meu aniversário é um mistério até pra mim: acontece quando menos espero, mas sempre sinto que evoluí quando este processo se dá. Cada vez que fujo do olhar acostumado que costumamos lançar sobre as pessoas, e descubro nelas algo que é novo e nunca será velho, canto os parabéns para mim. Conhecer um lugar diferente, ser diferente no lugar de sempre, se reapaixonar todos os dias por uma mesma pessoa, surpreender com um torpedo alguém que se ama, caminhar por uma mesma rua e reconhecer nela detalhes antes nunca vistos: todas essas são formas de aniversariar antes do previsto.

Nossos aniversários mais verdadeiros e transformadores acontecem no sigilo, dentro do quarto, apenas na companhia de si próprio. Podem acontecer também dentro de um momento que tempo nenhum apaga, dentro de um abraço que frio nenhum é capaz de congelar. Dentro de nós mesmos.

Acreditar que só existe um dia no ano propício ao recomeço é muita perda de tempo, e, como deveríamos saber, perder tempo é um insulto à vida. Portanto, feliz aniversário para aqueles que têm a coragem de nascer de novo todos os dias.

terça-feira, 9 de março de 2010

A vida numa montanha russa

No último fim de semana, fui com algumas pessoas muito queridas a um parque de diversões em São Paulo. Milhares de jovens se aglomeravam nas filas que davam acesso às diversas atrações do Hopi Hari. Eu, já tão acostumado com a adrenalina que é viver dentro de mim, resolvi encarar o desafio de embarcar nos trilhos e curvas alucinantes da montanha russa.

Quando me sentei no carrinho, pensei: “Em que roubada eu fui me meter!”. Aí, já era tarde... Minutos depois, saí avariado do brinquedo, com a sensação de ter ficado horas passando por aquelas guinadas repentinas e mudanças súbitas de altitude. Não sei por que, mas esta experiência inesquecível me lembra muito a vida que levamos diariamente. Estamos todos dentro de uma montanha russa.

Quando conheço uma nova pessoa e inicio com ela qualquer tipo de relação, embarco em um carrinho zerado, que também passará pelas reviravoltas e surpresas que qualquer caminho apresenta. Chacoalhados pelo tempo, nem sempre conseguimos nos manter nos trilhos, fechamos os olhos para não ver o trajeto, desaprendemos a observar o que acontece ao nosso redor.

Um namoro, se o soubermos sentir como tal, também pode ser uma montanha russa cheia de adrenalina e emoções, repleta de altos e baixos, curvas e desencontros, sustos e deslumbramentos. É claro que é muito bacana encarar desafios radicais – não pra mim, é claro –, nos sentir vivos através de experiências novas, entretanto, não me conformo que busquemos isso sempre fora de nós. Muita adrenalina se transforma, cotidianamente, em marasmo, pois nos falta um olhar sensível para percebê-la.

Uma simples tarde com os amigos pode ser tão emocionante quanto a descida da montanha russa, um momento banal entre duas pessoas que se amam pode proporcionar tanta adrenalina e deslumbre quanto uma descida no kaboom, um abraço confortante pode se tornar tão inesquecível quanto um salto de bungee jump.

É perfeitamente normal e saudável que busquemos outras formas de nos sentir vivos e com sangue correndo nas veias, mas isto se torna perigoso demais quando passamos a não perceber que nossa existência pode ser excitante todos os dias. Adrenalina é o que não falta na montanha russa da vida.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Coração congelado

Minha decisão está tomada: vou congelar meu coração. Aproveitem os últimos batimentos quentes deste coração que mais parece uma alegoria de escola de samba: batuca tanto, que me deixa surdo; tem tantas cores, que me confunde; tantas alegorias, que me perco; este meu coração tem tanto samba que sou eu quem acabo dançando no fim das contas.

Vou congelar meu coração antes que ele endureça, vou paralisá-lo para que ele não continue me paralisando diante de inúmeras circunstâncias da vida. Nem me venha com estes clichês como os que eu tinha antes de tomar esta decisão. Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três... Coração vendido para o Pólo Norte, exportado para as terras geladas, de onde seu calor não vai mais me deixar noites sem dormir, não vai me causar calafrios, não vai passar pela evaporação e se transformar em chuva que deságua pelos olhos. Tchauzinho, coração...

Estou dando adeus a este coração que tantas vezes me vez verbalizar o que deveria ter ficado calado, me despedindo deste moleque sapeca que sempre insiste em me pregar peças, me colocar em situações que me exigem paciência, conquista, espera. Não quero mais este coração que me testa, que me põe à prova todos os dias, encharcado de amor pelos outros, de amor, amor, amor... Pronto: por ser tão teimoso, já estou te colocando no freezer.

Vai passar uns tempos no congelador pra aprender a ser coração de gente, e não este coração que poetiza, enche a vida de lirismos e personagens, mas depois não sabe como dar fim à história de cada um deles. Meu coração é um artista de primeira grandeza, Leonardo da Vinci purinho. Pinta quadros que ninguém vê, esculpe sentimentos que ninguém aproveita, compõe canções e as expõe em um teatro vazio. Enfim, é completo: até escrever ele escreve. É uma pena que não saiba modificar os rumos dos próprios capítulos.

É por ter este coração tão sem vergonha, sem pedigree, é que estou aqui, encomendando uma forma de mandá-lo direto para a era glacial. Mas, ele é forte, resiste, insiste, não entra no caminhão, não perde o fôlego nem o ritmo. Tem tanto calor que derrete até a minha vontade em extraviá-lo.

Meu coração é de carne, do gênero humano, mas resiste ao gelo. Mesmo abaixo de zero, não congela nem petrifica. Ele não me obedece, só escuta a própria voz, só segue a própria intuição.

Pensando mellhor, ainda bem que nenhum gelo é capaz de petrificar meu coração, de impedir que ele me aqueça e queime, pois um coração congelado representaria o congelamento da minha própria vida, que, isolada em seu resfriamento, acabaria morrendo de frio.