domingo, 25 de julho de 2010

O olhar de arco íris

O som estava alto e a festa já tinha dezenas de corpos se chacoalhando, no ritmo eletrizante das músicas. De repente, notei que você lançava olhares perdidos para a pista de dança, meio que tentando encontrar, naquele mar de rostos bonitos, algum corpo que também conseguisse brilhar por dentro.

Aí, não posso negar que fiquei um pouco confuso, tendo sido inevitável questioná-lo se estava tranqüilo vislumbrar tantas possibilidades de desbravar outros mundos e, talvez, duvidar da certeza de já ter encontrado a terra certa. Sem titubear, você me respondeu: “Tá tudo legal. Estou muito bem acompanhado”.

Neste momento, acabei descobrindo mais um segredo seu: você carrega um arco íris dentro do olhar. Dizem que este símbolo marca uma aliança de Deus com a humanidade, uma promessa de que jamais haverá novamente uma catástrofe capaz de eliminar a vida no nosso planeta. O seu também é um pacto, firmado entre a beleza de dentro e a de fora, que prometeram que só se transformariam nas sete cores quando fossem capazes de brilharem juntas, sem que a deterioração de uma matasse a eternidade da outra. Hoje, este espetáculo está nítido no seu olhar. Basta um pouco de doçura para percebê-lo.

Na regra, todo arco íris é precedido por uma tempestade, mas até nisso você consegue ser exceção; o seu brilha a todo instante! Faça chuva ou faça sol nas estações climáticas da vida, você permanece com este quadro pendurado no rosto, emoldurado nos olhos, no entanto, tangível apenas àqueles que sabem enxergar pelo coração. Há quem olhe e não veja nada, pois é preciso muita audácia para ousar amar aquilo que os olhos não podem ver.

E tem também aquela velha história de que no final do arco íris tem um pote de ouro. Acho que era isso que todos procuravam ontem, naquela festa. Mas, ao contrário do que dizem as revistas e a televisão, o pote de ouro não pode ser tocado com as mãos: somente em pensamento é que se chega aos lugares mais bonitos. Por desconhecerem isso é que todos dançavam e se esfregavam e se beijavam como loucos, pois acreditam que o ouro está contido no pote do nosso corpo. Não é de se estranhar que, conseqüentemente, existam cada vez mais almas pobres, mendigas: essas se contentam com a frugalidade de um ouro falso, que derrete quando exposto ao sol do dia seguinte.

Já o seu pote de ouro é magnífico: está na extremidade entre uma cor e outra, ficando visível apenas a quem consegue coletá-lo, em moedas verdadeiras, através de cada sorriso dado.

As pessoas andam se queixando, dizendo que quase não se vê mais arco íris por aí. Que sorte a minha! Quando eu te encontrar de novo, terei ainda mais certeza de que não preciso esperar chover para ver um.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

No colo

O Brasil inteiro está acompanhando o drama da atriz e apresentadora da TV Globo, Cissa Guimarães, que perdeu seu filho caçula de forma trágica. Sendo uma das figuras mais carismáticas e expressivas da classe artística, Cissa está recebendo o apoio de inúmeros colegas de trabalho, que, o tempo todo, enviam a ela mensagens de consolo e profunda solidariedade.

Acompanhei várias dessas declarações de amizade à artista, mas uma, em especial, me chamou mais atenção: a da novelista Glória Perez, que, em 1992, passou por uma situação bastante semelhante. A autora sentiu a dor da perda de sua filha, a atriz Daniela Perez, brutalmente assassinada por um companheiro de elenco.

Sobre a morte do filho de Cissa, pelo Twitter, a escritora se manifestou através das seguintes palavras: “Tudo o que eu queria era botar a Cissa no colo. Força, amiga! Te abraço em silêncio...”.

Em sua declaração, Glória ofereceu à amiga o que de melhor pode haver em momentos como este: um colo que dispense qualquer palavra.

Existem situações na vida que dispensam palavras – a morte é a principal delas. Diante delas, reagimos sempre de modo clichê, oferecendo ajuda material, falando demais, verbalizando os pêsames, quando, na verdade, um gesto bastaria para, ao menos, amenizar a dor de algo muito maior do que nosso vocabulário.

Frente a uma trágica perda ou ruptura, como não sentir-se acolhido no colo de quem se ama? Dentro de um colo quente, o inverno parece mais brando, o frio da dor, aos poucos, passa a não nos congelar tanto, já que estamos embalados pelos sentimentos calados de alguém muito especial. Mesmo em silêncio, isso diz muito.

Um colo verdadeiro para o tempo, transformando o instante: embalados por ele, ficamos tão pequenos que aprendemos a ser grandes de novo. Viramos crianças, prestes a conhecer os mistérios de momentos que palavra nenhuma é capaz de preencher: basta a respiração de alguém por perto para dar-nos a sensação de que é possível seguir em frente.

E este colo muitas vezes pode ser oferecido, como bem citou Glória Perez, em silêncio, sem que os ruídos do mundo interfiram na ligação profunda e verdadeira que existe entre olhares que se abraçam sem precisar de mãos.

No colo, no abraço, na mão estendida e nos demais gestos que não carecem de dramatizações ou palavras, tudo pode acontecer. Inclusive, um coração avariado pode sentir-se freado e encontrar novamente o ritmo certo de suas batidas, percebendo que só morre quem deixa de existir dentro de nós.

Sei que é costumeiro sermos todos redundantes diante dos momentos tristes e que temos boa vontade em encontrar frases que possam amenizar a dor de quem amamos. No entanto, não há palavras mais verdadeiras e sutis do que aquelas que dizemos sem precisar dizer nada. O melhor consolo do mundo é dentro de um colo onde cabemos inteiros, sem precisar deixar a dor do lado de fora.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Ensaio sobre a cegueira

Já havia lido a obra original, escrita por José Saramago, mas foi assistindo à versão cinematográfica de “Ensaio sobre a cegueira” que tive a oportunidade de visualizar melhor inúmeros detalhes da trama. Sem dúvidas, este é um dos melhores livros que já li – e o filme também não fica muito atrás.

A história gira em torno da epidemia da chamada “cegueira branca”, que, após atingir, subitamente, um motorista no sinal, contamina toda uma região – inominável – e seus moradores – que também só são identificados por características –, sem que nenhum motivo aparente seja descoberto para o surgimento deste mal. Apenas uma mulher fica livre da doença e, durante toda a saga, permanece com a visão intacta, enxergando o horror e o caos em que se transformou o reino dos cegos.

Seria impossível mencionar todos os detalhes da obra aqui, pois são muitos e um acaba sendo mais interessante que outro. Porém, o que fica claro em diversos pontos da narrativa, tanto no livro quanto no filme, é que aquilo não passa de uma metáfora da sociedade em que vivemos, onde os olhos de milhares de indivíduos foram invadidos por um “mar de leite”. Assim como na ficção, nossa cegueira também é branca: estamos envoltos na superficialidade de uma luz que não nos permite ver o que, de fato, importa.

Num mundo cada dia mais capitalista e apegado às coisas tangíveis ao olhar, nossa visão está limitada, ancorada na rasura daquilo que pensamos ver, mas que não passa de uma projeção de nossa cegueira. Somos cegos que, vendo, não vêem. Nossa cegueira é tão branca que nos ofusca a vista, impedindo que sejamos capazes de perceber a beleza de momentos que escuridão nenhuma é capaz de cegar.

“Dentro de nós há uma coisa que não tem nome; essa coisa é o que somos.” Esta frase está no livro de José Saramago e também é pronunciada, de forma similar, no filme. Cegos, estamos nos deixando guiar pela brancura efêmera do prazer e do dinheiro, o que nos distancia cada vez mais dessa “coisa”, inominável, que somos. A cegueira de que sofremos é cruel, pois pensamos enxergar tudo, entretanto, quando abrimos, de fato, os olhos, somente a solidão nos faz companhia.

Nosso olhar é limitado, mas nossa visão pode ser infinita. Para nos salvar do náufrago da cegueira, é preciso que saibamos enxergar além do que os olhos nos permitem, encontrando a “coisa” que cada um de nós traz guardada dentro de si.

Casamentos estão em queda mais do que a bolsa de valores, alunos agridem professores e dão aulas no quesito criminalidade, relacionamentos começam e terminam num piscar de olhos, sentimentos são banalizados como se fossem mercadorias, pessoas são compradas como se fossem produtos. O caos já está instalado ao nosso redor. Por essas e outras, estamos todos ficando cegos.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Quem é o Cristo?

Recentemente, a liturgia da Igreja Católica celebrou a solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo, figuras de extrema importância para a história do Cristianismo. O trecho do evangelho de Mateus narrado nesse dia contou a passagem em que Jesus faz duas perguntas aos discípulos. No relato em questão, o mestre, primeiramente, quis saber: “Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?”; em seguida, os interpelou: “E vós, quem dizeis que eu sou?”.

Ao ouvir um líder religioso comentar o texto citado acima, a pergunta atualizou-se e se instalou em minha mente: “E eu, quem digo que Jesus é?”.

Jesus é o filho de Deus, que sofreu numa cruz para salvar a humanidade do pecado, mas também é, para mim, aqueles que sofrem pelas ruas, coroados pelos espinhos da miséria e da fome. O Nazareno é aquele que caminha ao encontro do outro, que evita que pecadores sejam apedrejados, que não despreza a oferta de um coração rico apenas em amor e afeto. O Cristo é aquele companheiro que nos liberta do marasmo em que estamos pregados, que ameniza o desespero que pesa sobre nossos ombros. O Jesus que eu conheço ainda sorri pra mim.

Nos dias de hoje, inúmeras pessoas que se dizem cristãs devem ter dificuldade para responder quem, para elas, é o Cristo, pois estão aprisionadas a uma visão limitada da figura central e pilar de todas as religiões cristãs. Espera-se ver Jesus nos grandes prodígios, nos milagres mais espetaculosos, nas igrejas mais lotadas, quando, na verdade, o “verdadeiro” Cristo poderia ser identificado nos gestos e situações mais corriqueiras da vida.

Um dia que amanhece de forma bela, o sol despontando sobre as montanhas, os raios ultravioletas aquecendo nossa pele.

Um namorado que te ama e te quer bem, que possui interesse real em sua vida e que, muitas vezes, te faz andar sobre ás águas através de um gesto, de um torpedo no celular, de uma palavra especial.

Um policial que não se vende nem deixa com que a corrupção corroa seu dever de ser a favor do bem.

Um político que não transporta nosso dinheiro na cueca, mas sim o reverte em benefícios e transformações positivas para a sociedade.

Uma pessoa que se preocupa em te agradar, sem medir esforços para isso, e que te faz sentir um verdadeiro bem aventurado.

Imortal, o escritor português José Saramago, ao ser questionado por um jornalista sobre “Como podem homens sem Deus serem bons?", respondeu: “Como podem homens com Deus serem tão maus?”.

Mais do que me redimir dos meus pecados, o Cristo que sigo me ressuscita todos os dias, fazendo com que eu perceba que a pedra dos sepulcros da vida precisa ser constantemente retirada para que seja possível vê-lo. O Jesus verdadeiro é aquele que nos leva ao céu apenas com o calor de um abraço fraterno. Retirar a pedra do sepulcro de dentro é se permitir ressuscitar diariamente para uma vida nova.