quarta-feira, 18 de maio de 2011

Canção da eternidade

Já sei o que vou querer tomar amanhã bem cedinho, no momento em que eu acordar: a quentura da sua lembrança, forte como café que deixa o gosto na boca. Daqui a algumas décadas, quando meu paladar não for mais capaz de distinguir o gosto das coisas, vou continuar sentindo seu sabor, pois seu gosto nunca se apagará de minha lembrança. Caminhando com lentidão e apoiado por uma bengala, seguirei desejando manhãs doces, ensolaradas como aquelas em que, mesmo chovendo, você abria o tempo de minha vida.

Se o tempo levar com ele a minha visão, não vou resmungar, desde que eu nunca seja impedido de te enxergar dentro de mim. Ainda que o clarão dos meus olhos voe pra longe com as folhas do calendário, verei o brilho dos seus, lembrarei de como sua boca se desenha ao sorrir, recordarei suas expressões faciais. Se a idade me trouxer, juntamente com os anos, a cegueira, continuarei tendo um coração vigilante e atento. Nele, seu rosto viverá para sempre pendurado, emoldurado em tintas que anos nenhuns vão ser capazes de desbotar. Ainda que minha pupila seja invadida pela escuridão, meu olhar não te perderá de vista. Você continuará sendo a luz dos meus olhos, mesmo que eles se apaguem.

Talvez minha audição comece a falhar quando eu tiver quase um século de vida, mas o som da sua voz permanecerá sendo reconhecido a quilômetros de distância. Caso as rugas me apresentem também a surdez, meus ouvidos nunca ficarão vazios de música, porque você vai estar cantando dentro deles. Canções de todo tipo, as gargalhadas que demos, nossas conversas, as estrofes que inventamos, as melodias que embalavam nossos momentos, hinos silenciosos que compomos em homenagem à vida, enfim, você será sempre uma caixinha de música em meus tímpanos, um som da natureza, o passarinho que canta na janela e anuncia uma nova esperança.

Quando minha mente começar a ratear e eu me esquecer até de mim, ainda neste dia me lembrarei perfeitamente do seu nome, saberei escrevê-lo de cór e salteado, vou me recordar de tudo que você me faz sentir. No alto dos meus 70 e blá, blá, blá, não quero ter acumulado bens materiais nem milhões em reais numa conta bancária. Desejo tão somente a simplicidade das suas palavras de ouro, do seu ombro – já frágil – para eu chorar, das suas mãos ricas em sabedoria para me ajudar a subir uma escada, da sua voz rouca e valiosa para relembrar da juventude, que não terá se apagado.

Terei rugas por toda parte, meus pés vão falhar ao tocar o chão, as palavras fugirão de mim no exato instante em que eu precisar dizê-las, minha memória vai estar fraca e na penumbra, minha voz soará cansada e envelhecida. Mesmo assim, continuarei jovem e com a alma de menino, brincando contigo em meus jardins floridos. Hoje, sou eterno, pois cultivo a esperança de que quando a juventude e os cabelos escuros forem só uma lembrança, você ainda esteja por perto para livrar-me do envelhecimento do coração.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

O inimigo

Ele está à espreita, só esperando que você abra a porta. Aliás, mesmo com as fechaduras trancadas, pode ser que ele arrombe as entradas e te invada, exatamente no momento em que você parecia começar a vencê-lo. Ele é esperto, malandro, se achega devagarzinho, vem comendo pelas beiradas e quando você percebe, ó, já era... Crau! Foi engolida por ele.

Geralmente, ele se torna conhecido assim: no meio de amigos que já foram dominados e te induzem a também se apaixonar, no ambiente de trabalho, nas salas de aula, escondidos dentro do banheiro. Depois de se fazer de amiguinho, você descobre que o inimigo não é flor que se cheire. Por mais que você o expulse, ele insiste em te infernizar.

Na primeira vez que brigaram ou que ele te fez sentir sintomas de cansaço, você achou que seria mole viver longe de algo que, claramente, já não lhe fazia mais bem. Mas ele te seduziu, fez você cheirá-lo de novo, ingerir um gole de seu prazer. Não adianta negar: ele lhe roubou as chaves de si mesma, tomou o volante de suas mãos, te empurrou pro banco do carona. Sim, baby, é o inimigo quem está no comando. Por mais que você relute, ele te envolve numa fumaça de mistérios e lhe põe aos pés dele. Você é um escravo sem juízo, um barco à deriva, alguém que pulou de pára-quedas e não sabe onde poderá pousar com segurança.

Quando ele fez com que seus amigos se afastassem de você e levou até sua família à desgraça, você decidiu que estaria tudo, tudo acabado. Fez as malas, mas esqueceu-se de que ele é duro na queda. Sem que você tenha notado, ele se enfiou no meio de suas roupas, chafurdou sua vida, grudou em seus livros, tatuou-se em seus sentidos. Sim, baby, é o inimigo quem está dando as cartas. Ele tem uma trinca de ases nas mãos e para vencê-lo vai ser preciso que você invente outros naipes. Nem copas, nem espadas. Você precisará ser de ouros para derrotá-lo.

Finalmente, depois de perder tudo que tinha pra ele, até mesmo a saúde e a felicidade, você resolve admitir que precisa de ajuda. Também, pudera: poucos vencem, sozinhos, a guerra contra este inimigo. Enfim, você corre atrás de aliados, procura trazer mais gente para o front de batalha, se arma, vai para baladas tentando esquecê-lo, evita o cheiro do infeliz, foge das lembranças dele. Ataca tudo que está fora, sem perceber que o verdadeiro bombardeio está acontecendo por dentro. É no coração e na mente que as granadas do inimigo estão botando tudo pelos ares.

Aí, você descobre que este tempo todo o inimigo não era apenas o cigarro, nem a bebida, nem um amor mal compreendido, nem as drogas, nem a dependência de comprar, nem a comida. Eram também o vício e o que você não tem feito de sua vida.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Mundo interno

Mesmo acompanhando apenas de longe, sempre admirei o trabalho da cantora e compositora italiana Laura Pausini. Mais recentemente, adquiri um CD da artista, que, por sinal, acho que já deve estar furado: não consigo parar de ouvi-lo. Só agora percebo o quão talentosa ela é. Com sua voz noturna e canções que são tão musicais quanto poéticas, Laura me seduziu, me fez ter vontade de aprender espanhol, de dobrar a língua e desafinar, enquanto ela soa doce como uma flauta.

Elogios à parte, uma das músicas de seu repertório me chamou mais atenção. Trata-se da faixa “Antes de irte”, que tem alguns simples versos capazes de nos fazer grudar os ouvidos... no coração. “O que você sabe de um mundo interno que não vê? Se serei forte ou chorarei? O que você pode saber?”, questiona Pausini durante o refrão da canção.

O que podemos saber dos outros é o pouco que deixam vazar, são rélis paisagens, aperitivos de seu mundo interno, é uma centelha do universo que trazem dentro de si mesmos. Sabemos dos sorrisos, mas nem sequer desconfiamos das lágrimas choradas em plena noite de sábado, dos relacionamentos que apodreceram quando pareciam amadurecer, dos troféus perdidos no momento em que a vitória já era dada como certa, das sementes que não vingaram, dos amores que terminaram antes da hora, dos sonhos que viraram pesadelos.

Cada ser humano é habitado por um mundo interno que telescópio nenhum permite ver. Às vezes, esta Via Láctea fica mais longe do que imaginamos, a milhões de quilômetros de distância do nosso alcance, de modo que somente o foguete de um olhar amoroso teria chance de nos levar até lá. Neste nosso planeta, existe a grande dificuldade de aceitar os alienígenas, pois temos medo de que eles descubram nossas riquezas e as destruam, de que roubem nossas estrelas, de que cortem nossas árvores e locais de sombra, de que tornem nosso céu escuro e sem oxigênio.

Buscando fugir da degradação de nossa própria sustentabilidade, escondemos as aves raras de sentimentos que voam dentro de nós, secamos nossas fontes de petróleo, tornamos o mar de nossas vidas salgado demais, apenas para impedir que alguém sobreviva nele. Há preciosidades em nós, mas, ao passo em que as exterminamos, a gente é que entra em extinção. Não se revelar também é uma pequena morte.

Quantos de nossos sentimentos já mofaram por falta de ar puro? Quantas vezes já não nos sentimos sufocados ao fechar portas e janelas, bloqueando o acesso dos outros ao nosso mundo? É claro que cada pessoa tem o seu “infinito particular” sagrado, um altar que é só vitrine pra fora, onde só entra quem for convidado. Restringir os selecionados é essencial, pois sair convidando todo mundo é coisa de gente triste. Porém, o que fazer com nosso mundo interno sem ninguém para habitá-lo? Eis o nosso paraíso, o Éden de cada um. Que sejam bem vindos aqueles que não quiserem profaná-lo.