sexta-feira, 31 de julho de 2009

O rapaz da jaqueta preta

Parecia uma tarde movimentada como qualquer outra em um período de férias escolares, afinal de contas, dentro de um shopping é normal o tráfego congestionado de pessoas. Imaginem então como estava o local com a folga da criançada e dos adolescentes! Até aí, nada estranho. Estava acompanhado de duas amigas, quando resolvemos lanchar em uma famosa rede de fast food. Nos sentamos e, sinceramente, não esperava encontrar poesia em meio àquele caos de consumismo. Ao sentar, notei que, em uma outra mesa, não muito distante da minha, havia um rapaz, de jaqueta preta. Aparentava ser jovem, não mais que 20 anos. Ele chorava.

Automaticamente, parei na cena. Foi como se meus olhos estivessem assistindo a um trecho emocionante de um filme. E era, com a diferença de que aquele drama me era transmitido ao vivo e, sim, fazia parte da vida real. Por alguns instantes, que me pareceram longos minutos, meus olhos só conseguiram enxergar o moço. Não foram suas lágrimas, que pareciam doídas e verdadeiras, que me chamaram a atenção. O que gritou em mim naquele roteiro foram as entrelinhas, o que estava implícito na cena, o que nem aquelas lágrimas poderiam revelar.

Qual seria o motivo que levava aquele jovem, aparentemente saudável e bonito, a despejar, em praça pública, toda sua miséria? Um rompimento amoroso, a perda recente de um amigo, a revelação de que sofria de uma doença em estado terminal? Ou seria porque seus pais morreram, porque não conseguiu conquistar a menina que ama ou não passou para o vestibular? Será que chorava uma perda ou um ganho, uma travessia ou uma chegada, um beijo que não foi dado ou beijos demais? Seja lá qual for o motivo que levava o rapaz as lágrimas, sem dúvidas, são semelhantes aos que nos levam a chorar dentro do quarto em uma tarde insossa de domingo ou em uma noite agitada de sábado.

O choro exposto do rapaz da jaqueta preta o tornava sozinho em meio áquela multidão. Seus olhos molhados instalavam uma barreira entre sua realidade individual e o mundo dos outros. Ele não parecia se preocupar com os espectadores do momento por qual passava, não se incomodava com os possíveis burburinhos que seu drama poderia estar causando em inúmeras outras pessoas. Chorava e ponto. Isso era tudo naquele instante. De repente, tive a mera impressão de que ele estava me olhando mas que, de repente, desviara seu olhar do meu, possivelmente temendo que eu me aproximasse e o abordasse. Confesso que tive vontade de fazê-lo, entretanto, me detive em mim mesmo e preferi manter a distância.

Sem mais nem menos, ele levantou-se e se foi. Como tudo aquilo que parte sem que possamos dizer “adeus”, fiquei agarrado àquele gigante ponto de interrogação. Poderia eu ter feito alguma coisa por aquele jovem? Esta história jamais sairá de minha cabeça, bem como não esquecerei o rapaz da jaqueta preta. As férias acabaram e é chegado o momento de a maioria das pessoas se reencontrar com o cotidiano. Fica, então, o desejo de que consigamos reencontrar as partes que nos fazem falta, os sentimentos verdadeiros que quase sempre ficam esquecidos dentro. Se você estiver ausente de si mesmo, não demore a retornar e, em sua volta à vida, feliz reencontro com o que deseja. Principalmente para aquele rapaz.

sábado, 25 de julho de 2009

Palavras ocupadas

Foi se deitar. O cenário? Uma noite fria de sábado, livros bagunçados sobre a cama e alguns pedaços de seu coração esparramados pelo chão. A saudade, já sentada no sofá, acenava um singelo “olá” e dava indícios de que, assim como uma visita inesperada, não iria embora sem antes tomar um chá ou fazer qualquer estrago na despensa. Tentou dormir, mas, evidentemente, não conseguiu. Quase sete meses após o término, seu amado estava novamente na cidade, a passeio. Levantou-se e viu papel e caneta em cima da mesa. Era exatamente os objetos que precisava para se distrair naquele momento. Resolveu escrever.

“Não sei por onde começar esta carta que já nasce em hora e momento impróprios. Sempre pensei que tivesse muito a dizer; e tenho. Mas, como encontrar palavras amistosas às duas e meia de uma madrugada onde estou insone e, mais uma vez, pensando em você? Talvez minhas palavras estejam ocupadas demais para serem capazes de transmitir-lhe algo realmente relevante e sublime. O que tenho a dizer cumpre uma tarefa muito árdua neste exato momento: vigia o que mora no meu íntimo, patrulha tudo aquilo que só vislumbro no submundo que existe aqui dentro. Com quem você está agora? Eu estou sozinha.

Quem me vê, não deve acreditar quando digo que não durmo como uma pedra há semanas. Como pode isso? Logo eu, tão cheia de substantivos e verbos, o ombro amigo de todos, o dicionário Aurélio em pessoa, a escritora e jornalista cativante? Minhas frases não vieram antes porque estavam incumbidas de vigiar meus instintos, de não permitir que meus impulsos trouxessem à tona a lembrança de quem eu nunca esqueci: você. Não saio do ar porque minha Tv, embora esteja sem a recepção do sinal, continua ligada em ti. Não durmo de tanta paixão entalada, de tanto desejo que tenho deixado pra lá.

Não sei em que condições esta carta te encontrará, entretanto, sei das condições em que a escrevo: inundada por sentimentos que invadiram minha casa sem que eu pudesse dizer não a eles. Eu tentei fechar a porta, eu tentei forçar a barra para que a lembrança de nós dois permanecesse trancada dentro do armário, trancafiada no fundo da gaveta. Lamento, mas, não deu. Agora, estou, mais uma vez, atribuindo a minhas palavras uma nova missão, dessa vez mais ousada e perigosa: transmitir a você o que ficou dentro durante todo esse tempo em que não tenho notícias suas. Não se incomode com as lágrimas que molham este papel. Elas também são palavras, mas doem porque não puderam ser ditas.

Sendo assim, faço jus ao que me proponho e lhe revelo algo misterioso até para mim mesma. Pelo longo tempo que temos pela frente em que não nos veremos mais, pelos inúmeros filmes que entrarão em cartaz sem que possamos assistir juntos, pelas inúmeras vezes em que me lembrarei de você e não poderei lhe dizer isso, pelo período em que não ouvirei sua voz ao final dos meus dias, pela imensidão da sua covardia, pelos muitos sim que te falei, pelo pouco que houve de não e pela solidão que me acompanha nessa noite, digo: te amo além das fronteiras do que é normal. Não te amo menos que a mim”.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Quem está dentro?

A enxurrada de acontecimentos que lota as primeiras páginas dos jornais não favorece em nada a criatividade para escrever uma crônica. Tenham certeza disso. A cada dia se torna mais difícil encontrar algum assunto relevante para abordar, uma vez que o risco de um escritor cair na “mesmice” é muito grande. Quase sempre dou sorte e, quando menos espero, sou surpreendido por uma frase ou texto que me entrega a inspiração para pensar em voz alta. Lendo uma fantástica crônica de Martha Medeiros (por sinal, mais uma brilhante), resolvi pegar carona no assunto abordado pela escritora.

Em seu texto, a excelente cronista cita uma passagem do filme “Foi apenas um sonho”, estrelado por Kate Winslet e Leonardo di Caprio. Na cena, a personagem da atriz desabafa com um vizinho a respeito do silêncio interior gritante que a assusta e ele, por sua vez, se mostra receptivo: “Eu entendo. Você queria sair dessa, não?”. Surpreendentemente, ela responde: “Eu queria entrar!”. A partir dessa declaração, fica claro o desespero da mulher por ter se deixado levar “pela vida”, por ter se juntado a multidão dos que aceitaram, resignados, que milhares de vozes abafassem o grito interior, a palavra presa na garganta.

Vivenciando a aparente alegria dos ausentes de si mesmos, a frase da personagem suscita no espectador atento o seguinte questionamento: será que você quer sair de um lugar onde nunca esteve? Será que está dentro ou ficou do lado de fora do casamento, da amizade? Afinal de contas, quem está dentro? Está dentro do jogo quem não se acomodou, quem não desistiu da dinâmica e continua enfrentando as dificuldades para reinventar-se a cada novo dia. Está dentro da própria vida quem não se ausenta por qualquer coisa. Você está dentro se não desistiu de ser você mesmo, se não silenciou a sua verdade para agradar os outros.

Por outro lado, como é ficar fora? É ver a própria vida acontecer sem a gente estar no palco, sem a nossa presença no foco de luz que ilumina os dias. Nossa maior preocupação deveria ser não a de sair de determinada situação, mas entrar. Ele não quer sair do namoro que já dura quase dois anos; quer entrar. Ficou preso do lado de fora quando se acomodou, quando sentou em uma cadeira na última fila do teatro da vida e ficou esticando o pescoço para ver o que acontecia no palco principal, ausente de sua própria presença. Ela não quer sair do casamento; quer entrar, mostrar ao amado o quanto pode ser divertida sendo ela mesma, demonstrar o verdadeiro afeto e até mesmo a indignação com o que não está legal.

Vivendo um cotidiano aparentemente perfeito, onde tudo são rosas e nada é questionado, a gente desiste de entrar e fica onde? Fora. Fora dos relacionamentos, das amizades, das conversas entre colegas de trabalho, do dia dos namorados, do bate papo com os pais em um almoço de família, dos sentimentos verdadeiros, das palavras de coração. Fora de nós mesmos. Talvez seja a hora de avaliarmos qual a posição que ocupamos dentro do nosso apartamento, dos cômodos que existem dentro de cada um de nós e que, por vezes, estão vazios. Não adianta querer sair. Antes, é preciso estar dentro.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

O reino de dentro

Particularmente, não gosto muito de ir ao cinema. Prefiro assistir aos filmes que gosto em algum outro lugar, na companhia apenas de pessoas que me são queridas. Não me sinto à vontade para expor minhas emoções mais íntimas diante da telona e de inúmeros outros desconhecidos, que não compartilham do meu interior (e ele quase sempre fica a mostra nessas ocasiões). No entanto, me rendi e fui com um amigo assistir ao animado e empolgante “A Era do Gelo 3”. Sem dúvidas, é um desenho fantástico e muito bem humorado, mas que também suscita nos mais sensíveis, como eu, infindáveis reflexões.

A trama do longa traz de volta os memoráveis amigos Cid, a preguiça atrapalhada; Diego, o tigre dentes-de-sabre durão; e Manny e Ellie, que aguardam o nascimento de seu minimamute. Os detalhes da animação, muito bem construída, prendem o espectador, no entanto, não foi isso o que mais me chamou a atenção. No filme, o bando é surpreendido pela descoberta de que abaixo da era do gelo ainda vivem os dinossauros, em um reino belíssimo, porém escondido. Me deu um estalo e comecei a pensar no reino que trazemos dentro de nós, nas terras escondidas que ficam debaixo da “casca”. O reino de dentro.

No meu reino de dentro também há dinossauros. Alguns muito ferozes, outros pacatos e quase nenhum adormecido. Consigo enxergar paisagens cinematográficas, águas cristalinas e a sombra das árvores. É nesses recantos interiores que repouso, mas isso só acontece quando consigo enxergá-los. Por descuido, deixo que lamentações sombreiem minhas visões mais belas do que sou. Por medo, quase sempre permito que a plenitude do que mora dentro seja sufocada pelas pressões que vêm de fora. No reino de dentro não vive apenas o que sou; tudo que aconteceu prossegue ressoando, tudo que se foi permanece acontecendo.

Também vislumbro no reino de dentro momentos e pessoas que eu pensava que nem existissem, mágoas que pareciam esquecidas e palavras que eu pensava que não doíam mais. Debaixo da casca, há muito mais do que se pode imaginar, mas os caminhos que conduzem a essas terras internas não são tão acessíveis assim. Para encontrá-los, é preciso mergulhar e conviver mais consigo mesmo, com a nossa parte mais particular e verdadeira. É nesse reino que ficam os caminhos desconhecidos e as emoções encobertas pelo medo de falar. É dentro que moram o perigo e a solução, a pergunta e a resposta, o ser e o estar.
O que não nos contaram é que é no reino de dentro que tudo se realiza, que tudo ganha cor e movimento, que a vida ganha forma e direção, e este não está estampado na estética e beleza vendidas pelas academias e nem no comércio de indivíduos e sentimentos. As pessoas se encantam com as embalagens dos produtos, mas não levam em consideração aquilo que eles contêm, as indicações e contra-indicações. Não é fora que moram o amor e a saudade, o perdão e o arrependimento, a cura e o mal, o sorriso e o abraço. É dentro de nós que vive um universo em permanente construção.