quinta-feira, 30 de junho de 2011

Divisão de bens

“Olha: o amor pulou o muro/ o amor subiu na árvore/ em tempo de se estrepar./ Pronto, o amor se estrepou”*. Foi exatamente isso que aconteceu com o amor deles: se estrepou, caiu das alturas e quebrou as pernas, ficou aleijado e não conseguiu mais sair do lugar. Despencado o amor, partiu-se também o casamento e, enquanto fazem as malas, a dor se enfia entre as roupas mal dobradas, no meio das sedas amassadas, que jamais serão tão suaves novamente. Nenhum ferro vai ser capaz de desamarrotar estas dobras, de deixar lisas as marcas que cada um deles leva no armário de dentro.

Enquanto se despedem, dão também adeus a um pouco de si mesmos, porque sabem que jamais se reencontrarão consigo próprios, visto que uma parte de cada um ficará para sempre presa no olhar do outro. Passam-se os dias e chega a hora de assinar o divórcio. Durante os instantes em que vêem a tinta preta tomando forma no papel, se dão conta de que estão, na verdade, assinando uma forma de testamento, pois temem que, daquele momento em diante, a vida se torne morte, e, separados, eles acabem moribundos, mesmo com o coração ainda batendo.

Chega a hora da divisão de bens. Ela pensa: “Será que posso levá-lo na mudança?”. Não, não dá. Ele reflete: “Será que cabe uma mecha do cabelo dela no caminhão?”. Não, isso é grande demais para ser colocado fora. Eles entram na casa, vazia, e notam que é exatamente assim que se sentem: com o som desligado, com os cômodos sem ninguém, como paredes que, já sem quadros pendurados, parecem ter perdido a utilidade. A TV é dela, mas, enquanto levam o aparelho para o carro, a moça pensa: “Para que vai me servir esta televisão, se não poderei mais assisti-la ao lado dele, se nossas séries norte-americanas favoritas jamais voltarão a passar com a música de sua risada ao fundo. Quero me desligar, como um filme que termina bem no meio do enredo, como uma história que perde a graça porque o final não é o que todos esperavam. O que eu esperava”.

Já o sofá ficou pra ele. Enquanto os ajudantes colocam as últimas almofadas no caminhão, o rapaz pensa: “Para que vai me servir este sofá, se não poderei me sentar nele ao lado dela, se jamais voltarei a senti-la me abraçando esparramado nestas almofadas. Nada mais em mim vai ser macio como este assento, minha panagem está completamente desbotada, tenho as estampas todas borradas de lágrimas”. Quando chega na cozinha, ela se depara com sua geladeira, que já está sendo carregada. “Que graça terá o refrigerador sem a prateleira em que ele guardava as cervejas que ia tomar no futebol das quartas-feiras? Acho que um inverno começou em minha vida, parece que me enfiaram dentro desta maldita geladeira, só que não tem porta. Sinto que estou num congelador”.

Também na cozinha, ele observa o momento em que seu fogão é encaixotado. “Que graça terá o fogão sem ela cozinhando aquela omelete que eu adoro? Estou sem tempero, perdi o sal e o gosto, pareço só estar exalando um cheiro de comida estragada, de um prato que foi deixado de lado. Não tem mais calor na minha vida, o forno do meu coração foi apagado”. Enquanto desciam as escadas juntos, pela última vez, e terminavam a mudança, finalmente perceberam que divisão nenhuma no mundo compensaria a dor daqueles instantes. O bem maior já tinha se perdido. Naquele instante, souberam. O que eles queriam mesmo era poder se levarem inteiros.

* Trecho do poema ‘O amor bate na aorta’, de Carlos Drummond de Andrade.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Imaginação insone

Estou deitado, já é madrugada, mas minha mente insiste em não pregar os olhos. Parece que um carro acabou de estacionar na rua da minha casa... O motor foi desligado. Será que um casal de namorados está aproveitando a noitada para acender seus corações? Ou será que é um simples viajante, que parou pra descansar porque não sabe para onde ir? Deve estar perdido, assim como meus pensamentos. Ouço os ruídos do carro e, num piscar de olhos, me vejo dentro do veículo. Que estrada tomar? Que rumo seguir? Se fosse tão fácil decidir isso, eu já teria puxado o freio de mão e seguido em frente, não estaria enguiçado numa esquina qualquer, já teria dado gasolina aos meus sonhos. O carro ainda está lá na rua, mas minha mente já foi pra longe... Mais uma vez, avançou o sinal vermelho.

De longe, ouço cães latindo. Silêncio... Pode ser que um ladrão esteja invadindo a residência e o animal tenha se assustado, pode ser que eu esteja sendo violado e não tenha ninguém para rosnar por mim. Au, au, au! O cachorro não para de latir. Será que tem alguém estranho entrando na casa? Tem sim. Eu. Ou será o marido infiel que está voltando da gandaia, na pontinha dos pés, pra esposa não desconfiar? Ele, com o cheiro da outra; ela, que comprou um novo perfume e só queria ser sentida, sorvida junto com seu aroma. Será que ela vai ficar com a pulga atrás da orelha e descobrir a pulada de cerca? E eu, será que vou me descobrir? E dá-lhe latidas! Não paro de escutar estes sons... São de dentro ou de fora?

Escutei um carro passando na estrada. Suponho que seja de uma família, que vai curtir o final de semana em outro lugar... Ei, ei, me leva junto? Meu coração é imenso, mas acho que cabe no porta malas. Se não der, a gente o amassa pra caber, afinal, um arranhão a mais, um a menos, que diferença vai fazer? Vai, me leva. Eu quero tanto ir. Aliás, não precisa. Deixa pra lá. Acho que já fui, estou na estrada junto com os carros, me dirijo pelas curvas sem respeitar a velocidade máxima, estou a 100 por hora, será que vai dar tempo de virar, não sei tirar o pé do acelerador, se frear posso acabar derrapando, se for em frente posso acabar batendo...

O cão parou de latir e o carro que estava parado em frente à minha casa acabou de sair. O motor foi ligado novamente e, agora, ouço-o se distanciando, seus ruídos vão ficando cada vez mais inaudíveis. Qual será o próximo som da madrugada, que músicas ainda vou ouvir antes do sono me alcançar, que filmes ainda passarão na minha mente antes que a madrugada os apague? Escuto o som e imagino seus possíveis emissores, me coloco no lugar de cada um dos viajantes que vejo passar diante da janela, mergulho nas ondas sonoras emitidas por um dos passarinhos que se dependuram em minhas janelas. O que terá feito o cachorro ficar quieto? E a mim, e meu coração que não para de rosnar, quem vai calar? Para onde foi o carro que, poucos segundos atrás, estava há alguns metros de mim? Será que foi pra longe, seguido por meus pensamentos? Todos dormem, mas minha imaginação, sim, é que insiste em se manter acordada.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Carta para alguém que se foi

Você se foi numa manhã qualquer, em que vi o sol nascer no céu, mas se apagar dentro de mim. Não me lembro a hora exata, quantos minutos durou nossa última conversa, só o que sei é que cada um daqueles segundos me custou o tempo de uma vida toda... E de uma morte inteira também. Você partiu, e eu fiz o mesmo: continuei indo, andando, chorando, lamentando, sorrindo, fingindo, desbotando... Desde então, comecei a viver no gerúndio, sempre indo sem saber pra onde, como um piloto automático que assumiu o comando da aeronave porque o piloto dormiu no volante... Até hoje ainda não sei se estou acordado. Por favor, me belisque?

Aquele último adeus que você me acenou ainda não cessou de ser abanado em meu coração. Ainda te vejo de costas, meio de lado, virado pra trás, inclinado para a esquerda, sei lá de que jeito, só sei que não enxergo suas lágrimas nem me lembro se você estava sofrendo, talvez porque as minhas próprias estejam embaçando minha visão e me impedindo de enxergar um palmo na frente do nariz. Se eu ainda choro por sua causa? O tapa que você me deu continua gravado, latejando sem parar, a marca dos seus dedos continua vermelha em minha alma... Nem cinco anos, nem cinco encarnações serão suficientes para que o estalo dos golpes cesse em meus ouvidos. Alguém me empresta um CD novo? Estou cansada de ouvir sua voz.

Se nunca mais fui feliz? Seria muita pretensão sua acreditar nisso, né... É claro que fui, e é justamente isso que me incomoda: não consigo ser feliz por muito tempo. Quando penso que as nuvens se dissiparam de vez e que, finalmente, o Verão voltou de vez pra minha vida, surge de novo o Inverno, sem nem dar tempo de eu me preparar numa Primavera ou num Outono qualquer. Quando dou por mim, minhas folhas já estão ressecadas novamente, meus botões de rosas já deixaram de florescer, minhas pétalas já estão caindo, como se fosse você quem estivesse brincando de bem-me-quer, mal-me-quer... Que pena que nunca mais consegui eu ser a sorteada no bem-me-quero.

Não sei o que tenho a dizer, são muitos sentimentos levantando a mão e pedindo pra falar, tem ódio e amor juntos e misturados querendo a palavra, estou sendo interrompida por vozes minhas que desconheço, calma, calma, que gritaria é essa, hein, gente?! Fiquei histérica desde que você se foi, não bato bem das bolas, deixei de ser feijão com arroz e virei uma salada de frutas: azeda e doce, ao mesmo tempo. Mas, voltando ao que tenho a dizer, e que continuo sem saber, acho que vou cantar pra passar o tempo... Ah, eu já te contei que aprendi a desafinar em inglês? No cursinho, a primeira frase que aprendi a escrever foi “I love you”. Não, não era pra você... Ou era?

Não repare o exagero nas reticências que empreguei nesta carta, pois estes três pontinhos me refletem, são uma pista sobre o meu atual estado de espírito. Desde que você se foi, virei uma mulher reticente, uma frase incompleta que deixa mistérios no ar, uma sentença que termina no meio do nada, um verbo cortado... Olha as reticências de novo aí! Enfim, é melhor eu ir deitar, nem sei por que resolvi escrever este monte de besteiras, só o que sei é que continuo sem ter rumo, meu piloto automático também escangalhou, acho que vou bater... Tomara que, enfim, destroçado meu coração possa voltar a bater inteiro.

De quem ficou,

Guta

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Um a mais

Um dos traços predominante na sociedade “contemporânea” é o conformismo. Pode anotar que esta zona de conforto em que grande parte da população mergulhou é uma tremenda roubada. A maioria das pessoas anda acomodada com tudo, com dificuldades para se mexer, fingindo ser feliz num casamento falido, deixando de abrir a mente para arejar e afastar o cheiro de mofo, sufocando numa vida de janelas fechadas, nem aí pros escândalos na política, achando cada vez mais normal o que sempre vai me cheirar a problema. Tem frases que expressam esta minha tese com clareza.

Estou zanzando pelo supermercado, passo por duas amigas conversando e ouço uma delas alardear: “Menina, um jovem morreu assassinado, hoje de manhã, pertinho da minha casa”. Com cara de paisagem e parecendo que acabara de ouvir simplesmente o preço do pão de sal, a outra respondeu: “Ah, este tipo de coisa acontece toda hora. Já estou até acostumada. É só mais um, amiga. Mas, então, o que vamos fazer hoje à noite?”.

Doido para me intrometer, passei batido da cena, porém, minha vontade foi cutucar os ombros da tal “menina” e falar: “Sinto lhe dizer, querida, mas não é só um a mais. É um ser humano a menos no mundo, é mais sangue sendo derramado, é menos um sonho, é mais uma mãe desesperada, é menos um voto para provocar mudanças, é mais uma chance de a violência chegar na sua casa, é menos falta de consciência da sua parte pensar deste jeito”.

Acomodados com as tais manchetes dos jornais, estamos nos acostumando a achar normal o que deveria nos preocupar – e muito. Vêm os escândalos na política e exclamamos: “É só mais um!”. Descobrimos que o filho de fulano de tal só quer saber de cocaína e pensamos “É só mais um!”. Lemos que morreu mais uma vítima das balas perdidas e fazemos pouco caso: “É só mais uma”.

E se o tiro fosse num filho da gente ou no da melhor amiga? E se o dinheiro que roubaram do idoso fosse o que você está juntando para comprar a sua casa própria? E se você não percebesse que seu próprio filho se viciou nas drogas, enquanto você só pensava em esmaltes e em quantas calorias tem um brigadeiro? E se a atual crise no Congresso Federal impedir o aumento do seu salário? E se os seus sonhos forem por água abaixo por causa do mais um de ontem? E se o mais um de amanhã for alguém que amamos? Talvez, se isso acontecer, teremos menos um motivo para pensar desta forma acomodada, para deixar de ver a vida desta poltrona egoísta e desta sacada de onde só o que nos convém pode ser enxergado.

Cada um a mais que se vai é um pedaço da nossa dignidade, é o escárnio da moral em praça pública, é o triunfo de uma política que pesa a mão para uns e a abre, generosamente para outros, é um braço a menos para remar neste barco furado em que, acomodados e confortáveis, continuamos navegando. Quando a coisa piorar e acabarmos naufragando, o um a mais seremos nós.