quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Dia de gente

“Hojeeeee! Hoje é meu dia de gente... Hojeeeee! É proibido dormir...” Quando ela acordou, Paula Toller estava cantando os versos desta música. O rádio sobre a penteadeira dormira ligado em sua estação FM favorita, e era de lá que saía o doce berro da vocalista do Kid Abelha. Sentiu-se convidada pela melodia, percebeu seus olhos dançando no ritmo da levada e, num relance, decidiu: “Hoje também será o meu dia de gente”. Olhou no relógio e notou que ainda não passava das sete da manhã. Mesmo assim, saltou, com toda empolgação, da cama e foi bem depressa para o banheiro. “Como é bom sentir-se gente de vez em quando”, sussurrou, encarando-se no espelho.

Partiu pra cozinha e abriu a janela com um sorriso mais iluminado do que o sol, abriu-se para o dia como se seus cômodos estivessem desarejados há muito tempo, como se seu ânimo estivesse precisando urgentemente ser aquecido. Recepcionou as primeiras horas da manhã como se fossem as últimas, valorizando cada segundo mais do que usualmente valoriza o dinheiro. “Afinal, é isso que gente de verdade faz: cuida do tempo tendo consciência do ouro que tem em mãos, não desperdiça segundos fazendo questão de poucos centavos, não troca o valor de suas preciosas horas nem pela maior cifra do mundo. Gente que ainda não virou um caixa eletrônico ambulante, que não transformou suas palavras em cédulas, sabe que falta faz um dia”, imaginou.

Decidiu que não ia tomar café. Queria se alimentar de algo que não pudesse ser mastigado, e sim sorvido, como o ar. Resolveu pegar um livro e devorou poesias, encontrando proteínas e sais minerais em cada um dos versos que lia. “Era desses nutrientes que minha alma estava precisando”, descobriu, enquanto saboreava uma farta porção de Clarice. “No meu dia de gente, estou percebendo o quanto minha alma estava desnutrida. A partir de agora, quero sempre complementar minha nutrição com boas doses de beleza. Para isso, vou procurar passar mais tempo com os amigos e menos no Facebook, olhá-los nos olhos, quero me nutrir ajudando-os a resolver suas inseguranças e comemorando os momentos em que forem fortes – e fracos. Reciclarei o meu lixo percebendo o que há de belo no outro, o jeito como sorri, o modo como afasta a lágrima que acabou de cair”, prometeu.

Antes de almoçar, foi até a pracinha da esquina, decidida a perceber coisas que só gente de verdade tem a capacidade de enxergar. Viu a forma esplêndida com que o vento esparramava as folhas, encontrou duas amigas se abraçando e, ao se deparar com um casal de velhinhos caminhando, descobriu o quanto dura a eternidade. “Isso sim é ser pra sempre: quando o amor não vira ruga dentro de nós e a fraqueza dos ossos nos debilitam, mas nosso coração continua forte, apoiado num sorriso que, vá lá, já está de denturas, no entanto, continua tão belo quanto foi um dia”, constatou.

Na paisagem, alcançou um andarilho, que tinha o hábito de passar as noites dormindo num caixote. A gente de hoje não tem tempo para notar meros detalhes como esse, está sempre tão atrasada para algum compromisso que pisoteia os que vivem pelas ruas, como se nem sequer fossem... gente.

Foi até o homem, que diziam por aí ser jovem, embora a juventude já estivesse afastada há tempos de suas atitudes, de seus sentimentos. Cogitou dar uma esmola, entretanto, hesitou. “Gente que é gente não faz só isso: também doa um pouco de atenção, também se entrega como dízimo. Por isso, hoje não compartilharei apenas umas moedinhas que estavam jogadas no fundo da carteira; algo tão simples todo mundo faz. Vou fazer diferente: ao invés de abrir as mãos somente para dar o dinheiro, as abrirei também para um carinho e para um afago. Ao invés de abrir a boca para criticá-lo e dizer que fede à pinga, tentarei abri-la para dizer ao mendigo algo que preste, que valha até mais do que uns centavos. Hoje, eu serei a esmola”, desafiou-se.

E, assim, ela passou o dia: fazendo gestos que são exclusivos de gente genuína, e não dessas que falam de Deus nas igrejas, mas rejeitam homossexuais e apóiam a matança de prostitutas; dizendo coisas que só gente com coração tem coragem de dizer, e não espalhando boatos e usando a língua para ferir o vizinho; inundada por sensações que apenas gente de carne e coração consegue, e não banalizando os sentimentos, achando que quem chora está mexicanizando a cena. Quando a noite chegou, sentiu-se satisfeita por ter conseguido algo tão difícil nos dias de hoje: ser, simplesmente, humana. Poder dramatizar. Contemplar o que está diante da janela. Ao apagar a luz e se deitar, sonhou: “quem me dera que eu conseguisse – e que me deixassem – ser gente todos os dias”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário