domingo, 13 de junho de 2010

Faz de conta

Não sou especialista no assunto, mas, pelo pouco que conheço, Clarice Lispector é, na minha opinião, a maior escritora da Literatura Brasileira. Firmo esta visão no presente porque o universo clariceano me parece atemporal! A cada nova leitura, fica a impressão de que a obra dessa mulher se transforma, tornando-se pertinente e atual a qualquer época e tempo.

Foi num trecho do escrito “Uma aprendizagem” – ou “O livro dos prazeres” –, da própria Clarice, que li algo que foi capaz de me roubar algumas horas de sono... “(...) fazia de conta que ela era uma mulher azul porque o crepúsculo mais tarde talvez fosse azul, faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações (...) faz de conta que amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que ela fechasse os olhos e seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos de gratidão, faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta, faz de conta que ela não estava chorando por dentro - pois agora mansamente, embora de olhos secos, o coração estava molhado”.

Não li o livro citado – encontrei o trecho acima na Internet –, entretanto, foi impossível não me sentir instigado depois de bater os olhos nessas palavras. Simplesmente, descobri que também eu ando “fazendo de conta” muitas coisas.

Não te ligo mais como era de costume, mantenho-me quieto no meu canto e consigo até ficar um dia sem ouvir sua voz. Faz de conta que isso não me incomoda, que estou confortável no papel que me cabe dentro do seu script. Faz de conta que não passo noites inteiras me despedaçando, que é fácil me fazer difícil e ter de arrumar meios para que não te seja difícil me enxergar facilmente. Me visto com cores vibrantes, tons chamativos. Faz de conta que não estou preto e branco por dentro.

Aos poucos, vou aprendendo a deixar os amigos em paz, a não incomodá-los com a minha carência que sempre chama pelo nome de alguém que me falta no peito. Faz de conta que meu coração acostumou-se a se sentar na mesa e ler o jornal sozinho, que ele não se incomoda mais por ter que almoçar uma comida fria porque ficou esperando a visita que não apareceu. Faz de conta que a discrepância entre a fantasia e a realidade não doem como farpas e que disfarçar um sorriso não lateja como lágrima. Todas as minhas emoções vêm originais de fábrica, nascem com selo de garantia. Faz de conta que não sangro quando as transformo em mercadoria barata, peças de camelô.

Então, faz de conta que minha história é cheia de personagens que me compreendem e entendem a dor de guardar no armário, além das tralhas e do amontoado de quinquilharias, um punhado de fantasmas que assombram meus dias e querem me tornar tão mórbidos quanto eles. Faz de conta que não tenho medo desses espectros, que não sou seduzido a me tornar mais um avatar de mim mesmo toda vez que alguém mata o que em mim foi feito para viver. Faz de conta que não sinto a falta dos meus próprios fetos que já abortei apenas porque não havia um pai para eles – eu.

Hoje, nesta noite fria de outono, continuo fazendo de conta que você está aqui, que eu ainda estou aqui. Faz de conta que eu acredito.

4 comentários:

  1. "Hoje, nesta noite fria de outono, continuo fazendo de conta que você está aqui, que eu ainda estou aqui. Faz de conta que eu acredito."
    caramba, há tanto tempo que não venho aqui, e acabei de me arrepender amargamente, suas palavras me fizeram chorar, é como se eu me encaixasse em cada frase sua. saudades amigo! beijos e ah ..
    ADOREI, como sempre né. não some não. eu te amo (L)

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  2. "Hoje, nesta noite fria de outono, continuo fazendo de conta que você está aqui, que eu ainda estou aqui. Faz de conta que eu acredito. "
    há tanto tempo que nao passo por aqui, e acabei de me arrepender amargamente. ficou linda sua crônica, acabei até me emocionando, é como se cada frase que vc escreveu transmitisse o que tenho sentido. incrivel como vc me entende.
    saudades amigo, eu te amo (L)

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  3. Caro amigo, é linda mesmo. Mas, aproveitando o ganho da amiga aí de cima "é incrível como vc se entende" e transmiti isso de forma tão agradável.
    Tenho um orgulho imenso de vc!
    Ana Paula Caldas

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  4. Ele sempre tem um modo de falar de si e ate dos outros, de uma forma que so ele é capaz!

    amigo, tenho orgulho de vc!

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