domingo, 27 de junho de 2010

O último pedido

Se me perguntassem agora o que eu gostaria de ganhar de presente, mesmo sabendo que ainda faltam mais de oito meses para o meu próximo aniversário, eu responderia: você. Ta bom, sei que o Natal ainda nem está chegando, mas já estou colocando meu sapatinho na janela pra ver se, de repente, eu olho e vejo: você. Se me oferecessem num cardápio, por exemplo, candidatos loiros, sarados, de cabelos lisos e pernas torneadas, ainda assim meu prato predileto seria: você. Se o sol apagasse neste instante e eu precisasse de alguém para me esquentar, eu escolheria você.

Ao ver o carro em que estamos subir a ladeira, fico feliz por percebê-lo com força o suficiente para chegar até o topo. Pois, você sabe, nós sabemos, que o melhor da vida quase sempre está no alto. De onde se pode ver a melhor a cidade? De onde o por do sol ganha as melhores cores? Onde ficam os frutos mais maduros, as folhas mais belas? Com os pés no chão, apenas confirmamos nossa existência; voando é que nos avistamos por dentro. Se meus olhos fossem cegar no próximo minuto e eu pudesse ver, pela última vez, o rosto de alguém, eu escolheria você.

Simplesmente, não consigo te olhar igual todos os dias. A cada vez que nos encontramos, vejo em você uma nova beleza, escondida num gesto simples ou na sua forma de corar quando fica com vergonha de algo. Meus olhos não se acostumaram a te ver sempre da mesma maneira: você é como um bosque em que, a cada dia, descubro uma flor diferente. Meu olhar estrangeiro busca detectar em você, todos os dias, uma nova estrada, um gesto desconhecido, uma espécie de borboleta em extinção que, até então, ainda não havia saltado de seu sorriso, uma nova nota musical que, até então, ainda não havia soado com a sua voz. Se o baile acabasse agora e eu pudesse dançar com um último príncipe, eu escolheria você.

Ao deixá-lo livre e o ver voar pela cidade, retornando a mim quando quer, percebo o quão verdadeiro é este sentimento que sinto por você, o qual trago transcrito no olhar. Só por amor é que se liberta um pássaro da gaiola, pois existe o risco de que ele não volte mais. Por isso, procuro te alimentar com o que há de melhor: rações em forma de abraços, minerais dissolvidos em beijos, girassóis transformados em palavras, frutos misturados com atenção. Só assim é que te ajudo a sentir-se à vontade para voltar quando sentir sede de mim. Se a cidade escurecesse esta noite e eu precisasse de luz para clarear o olhar, eu escolheria você.

Eu poderia pedir aos céus que a sorte batesse a minha porta e eu ganhasse na loteria, mas isso não seria suficiente se eu não ouvisse mais o barulho do teu carro, todas as vezes em que você chega pra gente se ver. A riqueza poderia até bater a minha porta, mas não teria a mesma graça de vê-lo abrindo as janelas do meu coração com um simples sorriso. Portanto, eu escolheria você. Se me dessem um último pedido, eu escolheria você. Se a vida acabasse hoje ou daqui mil anos, eu escolheria você.

domingo, 13 de junho de 2010

Faz de conta

Não sou especialista no assunto, mas, pelo pouco que conheço, Clarice Lispector é, na minha opinião, a maior escritora da Literatura Brasileira. Firmo esta visão no presente porque o universo clariceano me parece atemporal! A cada nova leitura, fica a impressão de que a obra dessa mulher se transforma, tornando-se pertinente e atual a qualquer época e tempo.

Foi num trecho do escrito “Uma aprendizagem” – ou “O livro dos prazeres” –, da própria Clarice, que li algo que foi capaz de me roubar algumas horas de sono... “(...) fazia de conta que ela era uma mulher azul porque o crepúsculo mais tarde talvez fosse azul, faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações (...) faz de conta que amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que ela fechasse os olhos e seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos de gratidão, faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta, faz de conta que ela não estava chorando por dentro - pois agora mansamente, embora de olhos secos, o coração estava molhado”.

Não li o livro citado – encontrei o trecho acima na Internet –, entretanto, foi impossível não me sentir instigado depois de bater os olhos nessas palavras. Simplesmente, descobri que também eu ando “fazendo de conta” muitas coisas.

Não te ligo mais como era de costume, mantenho-me quieto no meu canto e consigo até ficar um dia sem ouvir sua voz. Faz de conta que isso não me incomoda, que estou confortável no papel que me cabe dentro do seu script. Faz de conta que não passo noites inteiras me despedaçando, que é fácil me fazer difícil e ter de arrumar meios para que não te seja difícil me enxergar facilmente. Me visto com cores vibrantes, tons chamativos. Faz de conta que não estou preto e branco por dentro.

Aos poucos, vou aprendendo a deixar os amigos em paz, a não incomodá-los com a minha carência que sempre chama pelo nome de alguém que me falta no peito. Faz de conta que meu coração acostumou-se a se sentar na mesa e ler o jornal sozinho, que ele não se incomoda mais por ter que almoçar uma comida fria porque ficou esperando a visita que não apareceu. Faz de conta que a discrepância entre a fantasia e a realidade não doem como farpas e que disfarçar um sorriso não lateja como lágrima. Todas as minhas emoções vêm originais de fábrica, nascem com selo de garantia. Faz de conta que não sangro quando as transformo em mercadoria barata, peças de camelô.

Então, faz de conta que minha história é cheia de personagens que me compreendem e entendem a dor de guardar no armário, além das tralhas e do amontoado de quinquilharias, um punhado de fantasmas que assombram meus dias e querem me tornar tão mórbidos quanto eles. Faz de conta que não tenho medo desses espectros, que não sou seduzido a me tornar mais um avatar de mim mesmo toda vez que alguém mata o que em mim foi feito para viver. Faz de conta que não sinto a falta dos meus próprios fetos que já abortei apenas porque não havia um pai para eles – eu.

Hoje, nesta noite fria de outono, continuo fazendo de conta que você está aqui, que eu ainda estou aqui. Faz de conta que eu acredito.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Saudade não é doença

Já faz algum tempo que terminei de ler pela primeira vez o livro “Tudo que eu queria te dizer”, de Martha Medeiros. A obra se trata de uma compilação de cartas, autoradas por personagens fictícios, que ganham voz e vida através do talento cintilante dessa brilhante escritora.

A cada vez que releio os relatos, descubro algo que até então se mantinha oculto ao meu olhar. Numa dessas ocasiões, ao ler novamente a carta de Catarina, uma jovem que sai da cidade interiorana onde morava com os pais para tentar se tornar atriz, meu olhos arregalaram-se diante do seguinte trecho: “Pensei que eu sofreria, e descubro uma misteriosa satisfação em ser ninguém – o que não impede a saudade, mas saudade não é doença”.

É, acho que Martha tem razão. Saudade não é doença, mas causa náuseas, enjôo. A viúva sente saudade do carinho que seu marido costumava lhe fazer todas as manhãs, até o dia em que ele se foi para sempre e seu dia nunca mais amanheceu como antes. Saudade não é caso de cardiologista, mas dispara o coração, provoca taquicardia. Saudade de alguém que ainda está perto, entretanto, não te ama como antes; o sentimento é quem se foi para longe. Saudade não passa com gelol, mas incomoda feito dores musculares, nos quebra as pernas como uma lesão na alma.

O garoto sente saudade da mãe, que foi tentar a vida em uma cidade distante. A coberta cai de seu corpo de madrugada e não há mais quem esteja por perto para mantê-lo aquecido. Saudade não é doença, mas dá febre, aumenta a temperatura do coração, só pode ser medida se colocarmos um termômetro por dentro. Saudade das mensagens que ele costumava te mandar, do sorriso que apenas ela tinha, daquela pessoa que tinha interesse real por sua vida. Saudade não é doença, pois não passa com aspirina, não para de gritar no ouvido.

Saudade não é dor física, mas lateja no osso. Saudade é a presença da ausência que não sabemos vivenciar, são músicas que tocam na nossa memória, mas que, misteriosamente, não alcançamos mais como fazê-las tocar no presente. Saudade eu tenho de tudo que ficou no ontem porque não existiram estradas para chegar ao hoje.

Sim, sim. Martha está certíssima. Saudade não pode ser doença: se não há médico que possa curá-la, como poderia se tratar de uma patologia? Saudade é urgente, é caso de emergência, mas só passa quando morre. Saudade não é doença. É tempo chuvoso, gaveta vazia, fotos guardadas. Não, não: não é doença. São cortinas fechadas, livros sobre a cama, lágrimas pela face. Saudade não é doença. É pior.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Feliz sem saber

A prostituta que vende o próprio corpo por uns trocados, embora pareça que não, está em busca dela. Os pombinhos, recém-casados, se uniram para saber onde ela está; os namorados separaram-se para ver se a encontram. Todos vivem ávidos pela felicidade, mas justamente por considerá-la algo tão inalcançável é que permitem que ela escape. Se entendêssemos que a felicidade é algo simples, poderíamos ser felizes sem saber.

“Por que é que, para ser feliz, é preciso não sabê-lo?”, indaga o poeta Fernanda Pessoa. Buscamos ser felizes por algum motivo específico, negando a máxima de que a verdadeira felicidade é aquele sentimento que surge sem raiz aparente. Felicidade é aquilo que dá no coração nos momentos em que a gente está mais distraído, e por isso mesmo não percebe a grandeza do que está acontecendo. Ser feliz com motivos é fácil, difícil é perceber a essência da verdadeira felicidade.

Somos felizes sem saber quando temos alguém que se preocupa conosco, que pleiteia um lugar em nossa vida, que se preocupa quando as coisas não vão bem e se esforça para que a situação melhore logo. Não sabemos, mas somos felizes com aqueles amigos com quem jogamos conversa fora; somos felizes naqueles momentos em que não sabemos valorizar, mas que, de fato, dão rosto e vida à nossa felicidade.

Ser feliz sem saber é aprender a valorizar as situações cotidianas da vida, que podem até ser comuns e corriqueiras, mas que nunca serão banais se nós não nos tornarmos tão medíocres ao ponto de olhá-las como tal.

Nos tempos de hoje, o amor é visto como um impedimento ao prazer e a felicidade, quando ele é, na verdade, o principal caminho para viabilizar a excitação que esperamos nas baladas, que só são cheias de felicidade aparente e rasa, onde não poderemos nos afogar nem tampouco mergulhar mais fundo em busca de entendimento.

Buscamos na beleza passageira e nas alegrias efêmeras um sentimento duradouro, que, é óbvio, nunca será encontrado. Ser feliz sem saber não se trata de mágica; é apenas um novo olhar sob a vida.

Talvez, sejamos felizes sem saber durante grande parte da vida, mas, adormecidos, fechemos os olhos para esta felicidade genuína, que só será percebida como tal quando for tarde demais e a solidão tocar como despertador. Aí, acordados, perceberemos que já era: éramos felizes demais e não sabíamos.